Água mole em pedra dura...
- pedrorodrigues
- 3 de out.
- 5 min de leitura
Já todos conhecem o ditado (Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura), mas ninguém sabe porque é que esta rocha na Nova Zelândia tem este formato.
Mas não é de pedras que eu vos venho falar, até porque a minha especialidade não é em geologia. Quero partilhar aquilo que nos últimos 5-10 anos tem vindo a ser cada vez mais falado.
Todos vocês estão recordados da agitação criada com a entrada da DSM 5 em outubro de 2013, quando as pessoas que tinham um diagnóstico de Sindrome de Asperger se começaram a perguntar como é que iria ser a sua vida agora que todos teriam a mesma designação no diagnóstico - Perturbação do Espectro do Autismo. Mas depois apareceu as noticias de que o Hans Asperger, médico que deu o nome à Síndrome estava ligado ao partido nazi na II Guerra Mundial, e a questão deixou de o ser. Até porque as pessoas já nem queriam estar associados a este tipo de prática.
Mas esta entrada da Perturbação do Espectro do Autismo na DSM 5 veio trazer outras questões, o que é expectável tendo em conta a complexidade desta condição. Houve quem se começasse a perguntar se este chapéu único do autismo não iria deixar de fora as pessoas autistas que antes tinham a designação de Síndrome de Asperger? E em relação a isso, a DSM referiu que aqueles que tinham o diagnóstico em questão passariam a ter o diagnóstico com a nova designação. Mas ainda assim houvem quem se perguntasse sobre aqueles que ainda não tinham sido diagnosticados. Ou seja, se as pessoas com suspeita de um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, mas com um perfil de funcionamento mais subtil, não ficariam mais facilmente de fora deste diagnóstico tendo em conta os critérios agora definidos desta outra forma. Ainda que digam que isso não acontece, sabe-se na experiência clinica que o facto dos critérios estarem definidos tal qual na DSM 5 leva a que vários clinicos não se sintam confiantes em atribuir esse diagnóstico quando as pessoas apresentam características mais subtis. Nomeadamente, as raparigas e mulheres, com um fenótipo comportamental mais subtil e com comportamentos de camuflagem social sabem bem as dificuldades que têm estado a passar!
Mas também verificamos que aqueles que muito frequentemente não são falados no espectro do autismo. Ou seja, as pessoas com um diagnótico de Perturbação do Espectro do Autismo nivel 2 e 3 (níveis de apoio moderado e significativo, respectivamente) também se passaram a sentir marginalizados com estes critérios da DSM 5 e da forma como os apoios têm estado (ou não) a ser canalizados para as suas necessidades de suporte. Ao ponto da própria Catherine Lord ter mais recentemente levantado a questão de passarmos a ter uma designação de Autismo Profundo. E assim que foi publicado o seu artigo, as vozes discordante logo se fizeram soar para dar conta da discriminação que essa designação traria e de que seria um retrocesso na história do autismo e na vida das pessoas autistas.
Mas o certo é que as pessoas autistas nível 2 e 3, assim como os seus pais, responsáveis das instituições onde eles estão integrados não pararam de dizer que o retrocesso existente está a ser na não atribuição de condições adequadas e humanizadas para as pessoas autistas nível 2 e 3. Além de não ser novidade que este mesmo grupo de pessoas, que representa 2/3 do total de diagnósticos de autismo. Ou seja, se estimamos haver 78 milhões de pessoas autistas, 2/3 são pessoas autistas nível 2 e 3. São pessoas que desde sempre foram postas de lado em relação à sua participação no estudos de investigação cientifica no autismo. Isto é, os inúmeros estudos e que continuam a crescer na área do autismo, habitualmente usam como participantes as pessoas autistas nível 1 e que apesar de terem o mesmo diagnóstico, sabe-se que têm todo um conjunto variado e diferente de características comportamentais, comorbilidades, perfil cognitivo e intelectual, condições médicas e genéticas associadas diferentes. E isso faz com que se esteja a falar de um perfil de funcionamento da pessoa autista completamente diferente, assim como das suas necessidades.
Contudo, é importante lembrar que em 1941, no grupo de crianças inicialmente diagnosticadas pelo Leo Kanner, Hans Asperger e Grunya Sukareva, existiam crianças que hoje poderiam ser enquadradas numa Perturbação do Espectro do Autismo nível 2-3, mas também no nível 1. Isto porque se tem procurado fazer parecer que quando o diagnóstico de autismo entrou na DSM III em 1980 apenas se diagnosticava autismo com um perfil de funcionamento com mais dificuldades na interacção e comunicação social, mas também a nível comportamental e funcional. Mas isso não quer dizer que as pessoas autistas com outros perfis de funcionamento com maior nível de funcionalidade não existissem.
Quem vai participando nas redes sociais e mais especificamente em grupos de pessoas autistas, sabe que as querelas entre as pessoas autistas nível 1 e por exemplo os pais de pessoas autistas nível 2 e 3 é frequente. Ao ponto de haver arremessos verbais de, Eu sou mais autista do que tu e por isso tenho mais direito aos apoios!
Tenho por hábito dizer que quando empobrecemos uma sociedade, tendencialmente eles começam a entrar em conflito entre si pela sobrevivência. E ainda que com as devidas diferenças, sinto que é em parte isso que tem vindo a acontecer neste tema. Mas não só.
É também importante podermos pensar que apesar dos critérios terem mudado na DSM 5, o certo é que as pessoas, nomeadamente clinicos e investigadores, mas também pessoas autistas e pais, continuam a observar um conjunto de grupos (cluster) diferentes de pessoas autistas. E se antes da DSM 5 isso parecia ser mais fácil pois haviam vários diagnósticos diferentes de autismo, depois passou a ser mais dificil de compreender. E as pessoas conseguem identificar um perfil de funcionamento bastante diferente quando temos um aglomerado de pessoas autistas. Seja as diferenças do fenótipo comportamental feminino versus masculino. Ou devido ao perfil cognitivo frequentemente heterogeneo, temos pessoas autistas que são mais propensas a comunicarem verbalmente com mais facilidade e outras que sentem maior facilidade no processamento da informação visuo-espacial. E essas diferenças transformam a forma como a pessoa interage com os outros e o Mundo.
A história do autismo tem mostrado que a forma de pensar, avaliar, diagnosticar, intervir são diferentes ao longo do tempo. O autismo começou por ser um subdiagnóstico da esquizofrenia. E hoje, após todas estas voltas estamos novamente a falar da intersecção entre a psicose e o autismo. Parece-me importante que as mudanças que continuem a ser operadas possam ser feitas de forma cautelosa e em respeito às pessoas autistas, independentemente do seu nível de apoio. Será fundamental pensar nas necessidades, ainda que diferentes, das pessoas autistas. No nível 1, e não obstante a sua maior funcionalidade e competências cognitivas e intelectuais, as pessoas autistas neste nível continuam a sentir um conjunto marcado de desafios e obstáculos. No nível 3, e com o movimento existente nos últimos anos da inclusão de todos na sociedade, levou ao desmatelanto de escolas de ensino estruturado e outras respostas. E ainda que estas opções devessem ser reflectidas para atender a uma resposta mais humanista e em respeito à dignididade da pessoa autista. O facto de terem sido desmanteladas sem previamente ser garantido uma resposta adequada, têm-se verificado um conjunto de falhas nas respostas às necessidades destas pessoas e das suas familias.
Será fundamental que uns e outros se continuem a mobilizar e contribuir para uma mudança respeitadora da dignidade e dos direitos da pessoa autista. E que nesta caminhada, ao invés de nos arreigarmos de detentores do autismo, possamos em conjunto e em respeito pelas diferentes perspectivas, experiências e formação fazer por criar uma melhor resposta. Aquela pedra na fotografia, ainda que cortada ao meio, não deixa de ser parte da mesma pedra e matéria.

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