Bem estar autista
- pedrorodrigues

- há 2 dias
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Nunca percebo se ele está contente ou não! Carlos (nome fícticio), pai do João (nome ficticio) de 24 anos com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo. Mesmo quando ela tira a melhor nota da turma ou recebe um prémio nunca esboça um sorriso! Carolina (nome fícticio), mãe da Joana (nome fícticio) de 19 anos com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo. A semana passada foi escolhido para coordenar um grupo de trabalho na Comissão Europeia e não percebo se está satisfeito ou não! Maria (nome fictício), esposa do António (nome fictício), 46 anos com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo.
Como em muitas outras áreas de vida da pessoa autismo, muitas das pessoas que convivem com eles no quotidiano consideram um desafio perceber acerca do bem estar da pessoa autista. Sendo que esta dificuldade parece estar repartida entre a pessoa autista e a pessoa não autista. Ou seja, tal como na teoria da dupla empatia, não é apenas uma determinada característica da pessoa autista que determina uma forma mais atipica de pensar e sentir o bem estar. A pessoa não autista, muito frequentemente considera o bem estar a partir da sua própria forma de o sentir e isso leva a um enviesamento maior relativamente à forma como considera a existência ou não de bem estar e a sua qualidade mais ou menos atípica.
Por exemplo, podemos ter a Joana que de acordo com a sua mãe parece não ficar contente com os seus resultados académicos. Contudo, quando perguntamos à Joana para nos explicar, ela diz-nos que para si é algo que deve acontecer e como tal não se sente empelida a sentir satisfação por algo que é expectavel acontecer. Ou então, podia ter a ver com o facto de não querer atenção sobre si e como tal procura não ter o foco de atenção dos outros sobre si. Mas também poderiamos estar a pensar no facto da pessoa autista poder não saber como expressar o seu contentamento, ou sabendo-o, ficar a pensar se o estaria a fazer bem ou se os outros pensariam ser uma reacção correcta e adequada da sua parte. Os exemplos, são infinitos,, mas uma coisa parece certa, as pessoas autistas têm algo a dizer sobre esta questão do seu bem estar. Além disso, parece-me claro que as pessoas autistas podem e sentem bem estar, mesmo que possam não o estar a expressar de uma forma normativa face às pessoas não autistas. Mas também é importante podermos pensar que o bem estar para as pessoas autistas possa ter outros indicadores ou outros pesos e importâncias.
Quem eu quero ser? Eu quero ser uma pessoa compreensiva, independente, que possa viver em sociedade de acordo com os seus modos atípicos. (...) Eu quero viver de forma autónoma. Na verdade, essa é uma das coisas mais importantes, eu quero fazer as coisas por conta própria, sem depender dos outros para viver a minha vida. Carla (nome fictício), 23 anos, com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo.
Acho muito difícil expressar com palavras que preciso de algo, por isso, muitas vezes, demonstro isso através do meu comportamento. (...) Aqui, esperam realmente que expresses de forma normal e adulta que precisas de algo. Acho isso muito difícil, porque ainda não tenho essa segurança em mim, mas é o que esperam de mim.
Às vezes fico confuso com as emoções e sinto-me em baixo, ou algo me lembra a minha mãe ou o meu pai de uma forma negativa, e então não consigo motivar-me para fazer as coisas. E então, não consigo. Por isso, colocar em prática as coisas que posso fazer é muitas vezes um problema para mim. Júlio (nome fictício), 21 anos, com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo.
Às vezes, as minhas emoções e os meus sentimentos tomam conta de mim. E então sinto que não sou eu mesmo ou algo assim. (...) A estrutura do dia é importante para mim, se não tiver isso, fico na cama o dia todo.
Como em tantas outras áreas da vida humana, o bem estar enquanto conceito é multifacetado e tem um conjunto variado de teorias que o explicam. O bem-estar é um conceito multifacetado que inclui aspetos hedónicos (por exemplo, emoções positivas, sentimentos de satisfação com a vida) e aspetos eudémicos (por exemplo, sentido de significado e propósito, sentimentos de realização). As teorias do bem-estar têm-se centrado tanto em avaliações subjetivas como em componentes psicológicos que conduzem ao bem-estar. O bem-estar subjetivo centra-se na satisfação com a vida, na presença de afetos positivos e na ausência de estados afetivos negativos. Por outro lado, o bem-estar psicológico tem sido definido de forma a incluir uma gama mais ampla de elementos, incluindo auto-aceitação, relações positivas, autonomia, domínio do ambiente, propósito na vida e crescimento pessoal.
As conceções sobre o autismo evoluíram de um enquadramento estritamente biomédico para uma perspectiva centrada na neurodiversidade, movimento que trouxe consigo uma reformulação profunda da forma como o bem-estar é entendido. Nas últimas décadas, tem emergido um interesse crescente em clarificar o que realmente constitui o bem-estar para pessoas autistas, reconhecendo que, durante muito tempo, estas não foram chamadas a definir os parâmetros do seu próprio florescimento. O debate tem transitado gradualmente do paradigma biomédico dominante para uma visão que valoriza o pensamento da neurodiversidade, permitindo explorar o bem-estar enquanto experiência situada, dinâmica e plural do florescimento autista. Esta transição desloca o foco do funcionamento individual isolado para a análise das oportunidades concretas que cada pessoa autista tem para construir e sustentar uma vida plena, sempre em relação com os contextos sociais, estruturais, legais e políticos que a envolvem. Procura também compreender como profissionais e figuras significativas podem apoiar essas oportunidades ao longo da vida. Ainda assim, continuam a faltar modelos abrangentes que integrem fatores pessoais, sociais e políticos na explicação do bem-estar autista.
A Abordagem da Capacidade oferece um enquadramento conceptual útil para pensar o bem-estar enquanto resultado da articulação entre recursos internos e condições externas, reconhecendo a multiplicidade de dimensões e a diversidade individual que caracterizam as trajectórias humanas. A sua aplicação tem sido vasta, estendendo-se à saúde, educação, economia, trabalho e estudos sobre deficiência, evidenciando o potencial para orientar decisões e práticas que promovam o florescimento autista. Contudo, apesar da sua utilidade teórica, os estudos empíricos e as aplicações práticas continuam limitados.
De acordo com a perspectiva biomédica, o autismo é conceptualizado como uma perturbação neurodesenvolvimental permanente, identificada através de avaliação clínica segundo os critérios do DSM-5-TR, que incluem dificuldades na interação social e comunicação, bem como padrões repetitivos de comportamento e interesses. O bem-estar, neste enquadramento, é frequentemente entendido como ausência de doença ou incapacidade, e o tratamento procura reduzir sintomas ou aproximar o comportamento individual de normas sociais consideradas típicas. Esta leitura reducionista tem sido amplamente criticada por tender a impor ajustamentos comportamentais alinhados com expectativas sociais, negligenciando valores pessoais e direitos de autodeterminação. Além disso, ao privilegiar objectivos como a normalização do funcionamento social, este paradigma produz uma visão restrita do que pode constituir o bem-estar autista e ignora a complexidade das interações entre indivíduo e meio. O bem-estar e a saúde mental dificilmente emergem de relações lineares entre causas e efeitos, o que torna este modelo particularmente limitador.
Os movimentos associados à neurodiversidade defendem uma compreensão contextual do autismo que integra factores pessoais, sociais e culturais. Nesta óptica, neurodivergência refere-se a formas de processamento e interação com o ambiente que diferem das mais comuns, incluindo, entre outros, o autismo, a perturbação de hiperatividade e défice de atenção e a dislexia. A neurodiversidade enfatiza que as variações neurocognitivas são expressões legítimas da diversidade humana, não desvios patológicos. As pessoas autistas podem apresentar combinações singulares de pontos fortes e desafios, bem como modos particulares de percecionar o mundo, sendo que muitas das dificuldades que enfrentam nascem de contextos sociais pouco adaptados às suas necessidades. A exclusão e o estigma associados a esses contextos têm impacto profundo no bem-estar. Apesar da sua relevância, esta abordagem ainda tem sido pouco incorporada na investigação e na prática clínica.
A Abordagem da Capacidade, enquanto teoria do bem-estar e da justiça social, parte do princípio de que cada pessoa deve dispor de liberdade real para concretizar aquilo que valoriza. As capacidades correspondem precisamente a essas oportunidades efectivas de ser e fazer. Uma sociedade justa é aquela que promove, protege e amplia as capacidades dos seus cidadãos, ajustando a distribuição de recursos de forma a garantir que grupos específicos, incluindo pessoas autistas ou com problemas de saúde mental, possam realizar o seu potencial. Tem sido debatido se existem capacidades ou factores de conversão particularmente relevantes para pessoas autistas, ou se esta abordagem é sobretudo útil para analisar a adequação entre necessidades individuais e as possibilidades que o contexto oferece ou limita. Até ao momento, não foram identificados estudos que utilizem de forma sistemática os conceitos centrais da Abordagem da Capacidade para orientar conversas sobre bem-estar com pessoas autistas ou para identificar capacidades e recursos específicos. Persiste, contudo, um desafio metodológico significativo: as preferências adaptativas. As pessoas tendem a ajustar os seus valores e expectativas a circunstâncias de privação ou mudança, o que dificulta a identificação das capacidades que realmente consideram valiosas. A integração de perspetivas de cuidadores e outras figuras significativas permanece igualmente pouco explorada.
Esta evolução conceptual aponta para a necessidade de quadros mais completos e sensíveis à diversidade autista, capazes de incluir tanto a voz das pessoas autistas como os múltiplos contextos que moldam as suas oportunidades de viver bem.
Em síntese, tanto o modelo biomédico como a perspectiva da neurodiversidade oferecem contributos relevantes para compreender o bem-estar das pessoas autistas, mas nenhum deles, por si só, parece suficiente para captar a complexidade desta realidade. O primeiro fornece ferramentas clínicas importantes, mas tende a reduzir o bem-estar à gestão de sintomas e à conformidade com normas sociais que muitas vezes não refletem os valores da própria pessoa autista. O segundo introduz uma valorização necessária da diferença e das condições contextuais, porém permanece limitado na sua tradução para práticas concretas que permitam avaliar, promover e sustentar o bem-estar ao longo da vida. As narrativas apresentadas mostram que a interpretação externa das emoções e do bem-estar autista é frequentemente enviesada pelas expectativas normativas da pessoa não autista, o que reforça a necessidade de modelos explicativos que integrem verdadeiramente a experiência subjetiva das pessoas autistas.
Perante esta insuficiência mútua, torna-se evidente a urgência de desenvolver enquadramentos mais robustos, aplicáveis e sensíveis às múltiplas dimensões do bem-estar autista. Abordagens como a Abordagem da Capacidade oferecem um ponto de partida promissor, já que permitem articular recursos internos, condições externas e valores pessoais num mesmo espaço conceptual. No entanto, só ganharão força quando incorporarem de forma sistemática a voz das próprias pessoas autistas, respeitando a diversidade das suas expressões emocionais, dos seus modos de estar e dos seus projetos de vida. Compreender o bem-estar autista exige, portanto, abandonar leituras simplificadoras e construir medidas e práticas que reconheçam a singularidade, ampliem as oportunidades reais e criem contextos que sustentem vidas que valham a pena ser vividas para quem as vive.




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