Costurar as pessoas autistas na Psicoterapia
- pedrorodrigues

- há 6 dias
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"It is sometimes much more important
to know what sort of a patient has a disease than what sort of disease a patient
has".
Sir William Osler
A psicoterapia, quando verdadeiramente compreendida, aproxima-se de um ofício artesanal. Não se limita à aplicação mecânica de técnicas nem à repetição de um molde previamente concebido. Trabalha-se com matéria viva, com texturas internas que variam de pessoa para pessoa. O processo terapêutico aproxima-se, assim, de um gesto antigo que se repete em silêncio: costurar o que chega às nossas mãos, unir fragmentos, reforçar zonas frágeis, abrir espaço para novas formas e novas linhas de sentido.
No entanto, tal como na costura, nenhum tecido permite a mesma agulha e nenhuma linha serve todos os materiais. A seda exige delicadeza, o linho pede firmeza, a lã tolera a tensão. O artesão sensível aprende a adaptar-se ao que tem diante de si, não força o tecido a ser o que não é. Na psicoterapia com pessoas autistas, esta premissa deveria ser evidente, mas ainda não o é. A investigação avança de forma lenta e dispersa, e muitos modelos psicoterapêuticos permanecem rígidos, presos a pressupostos que não contemplam as especificidades das experiências autistas. Esta rigidez leva, por vezes, o terapeuta a sentir que perde a textura do encontro clínico, como se a agulha escorregasse do tecido e deixasse de o conseguir prender.
Recordo uma mulher autista que descreveu a sua primeira psicoterapia como um exercício de desencontro. Contou que entrava na sala com uma constelação de sensações intensas e pensamentos encadeados, mas o terapeuta insistia em conduzir a conversa para esquemas interpretativos que lhe pareciam estranhos. Dizia que sentia como se alguém tentasse costurar lã com uma agulha desenhada para bordar seda. Tudo parecia romper-se. Ao fim de algumas sessões, confessou que começou a acreditar que o problema era dela, que não se deixava adaptar ao método, quando na verdade o método não se adaptava a ela.
Do outro lado, também há vozes que revelam inquietação. Um psicoterapeuta com larga experiência disse-me que, perante um paciente autista adulto, sentiu desde o início uma espécie de desfasamento. Falava de um ritmo relacional que não conseguia acompanhar, de uma comunicação que lhe parecia assimétrica e de uma ausência de pistas subtis que habitualmente usa para orientar o trabalho clínico. Admitiu que sentiu a agulha tremer entre os dedos, como se estivesse a tentar coser no escuro. Não era falta de vontade, era falta de instrumentos adequados, falta de compreensão profunda sobre as especificidades cognitivas, sensoriais e relacionais do autismo.
Estas experiências cruzadas mostram algo que há muito se discute, mas que ainda não se tornou prática comum: a necessidade de adaptar a psicoterapia às características singulares de cada pessoa. Este princípio de individualização é antigo e transversal a quase todos os modelos psicoterapêuticos. Defende-se que o que funciona para um paciente pode não funcionar para outro. Aceita-se que cada pessoa é um caso singular. E nomeia-se este processo de muitas formas, como adaptação, personalização, sintonia ou capacidade de resposta. O objetivo é sempre o mesmo, aumentar a eficácia do tratamento, ajustando-o ao modo particular de ser do paciente.
Apesar disso, na prática clínica, a personalização tem sido frequentemente reduzida a uma correspondência entre categoria diagnóstica e modelo terapêutico. A pessoa com ansiedade específica é encaminhada para uma intervenção cognitivo-comportamental, a mais estudada para esse quadro. Esta forma de corresponder é útil em muitos casos, mas permanece incompleta, porque deixa de fora as nuances que ultrapassam qualquer diagnóstico. Quando falamos de autismo, esta incompletude torna-se evidente e, por vezes, prejudicial.
A escassez de investigações sólidas sobre adaptações psicoterapêuticas específicas para adultos autistas criou um vazio que muitos terapeutas tentam preencher com improviso clínico. Este improviso pode ser criativo, mas também pode ser insuficiente ou, em certos casos, contraproducente. Faltar o fio certo para o tecido certo significa que a costura perde consistência, que se desfaz com facilidade ou que magoa quem a veste.
Outra paciente autista relatou que se cansava do esforço de traduzir o seu modo de pensar para formas que acreditava serem mais aceitáveis ao terapeuta. Dizia que sentia que tinha de polir as palavras, de esconder o detalhe que para ela era fundamental, de abrandar o ritmo interno para encaixar no ritmo do outro. Sempre que fazia isso, descrevia um vazio crescente. Contou que saía das sessões com a impressão de que alguém lhe cosia a pele sem atenção à sensibilidade do tecido, criando uma costura rígida que não acompanhava os movimentos naturais da sua vida.
E há terapeutas que reconhecem, com humildade clínica, que não sabem sempre como aceder à experiência autista. Falou comigo um colega que descreveu a sensação de falhar na criação de um espaço suficientemente seguro para um paciente que se mostrava literal, preciso e pouco disposto a metáforas. O terapeuta percebia que, ao insistir em ferramentas que dominava, impunha agulhas e linhas que não respeitavam a textura do paciente. Disse que, num certo momento, compreendeu que tinha de aprender um outro modo de costurar, um que exigia menos pressupostos e mais escuta.
Estas vinhetas mostram a urgência de um movimento clínico mais profundo. Adaptar a psicoterapia ao autismo não implica reinventar toda a teoria, mas exige rever o modo como usamos os instrumentos, afinar técnicas, flexibilizar rotinas e, sobretudo, perceber que o tecido autista tem características próprias que não devem ser limadas para caber num molde pré-definido. Exige compreender diferenças sensoriais, modos de comunicação específicos, padrões cognitivos singulares e necessidades relacionais que nem sempre se enquadram no que os modelos tradicionais assumem.
Costurar pessoas autistas na psicoterapia significa reconhecer que cada ponto tem de acompanhar o desenho interno de quem ali está. Exige escolher a agulha adequada para não ferir, escolher a linha certa para não rasgar, ajustar a tensão para que a costura permita movimento. Quando esta atenção existe, a terapia deixa de ser um esforço de adaptação unilateral. Torna-se uma prática conjunta, onde paciente e terapeuta descobrem um modo de se encontrarem num tecido novo, mais genuíno e menos condicionado por modelos rígidos.
A psicoterapia, entendida assim, transforma-se num ofício ético. Não se trata apenas de tratar, mas de reconhecer a dignidade da singularidade. E talvez seja justamente na precisão deste gesto, tão próximo da costura, que a clínica encontra o seu sentido mais profundo: unir o que chega às nossas mãos sem tentar transformar o tecido, respeitando a forma como cada vida se tece.
A reflexão sobre a necessidade de adaptar a psicoterapia às pessoas autistas obriga também a olhar com atenção para as estruturas que moldaram a própria prática clínica. Os modelos teóricos que nos orientam, tão essenciais para dar forma e coerência ao trabalho, nascem frequentemente de contextos históricos específicos e de visões particulares sobre o que significa ser pessoa. Tornam-se, por vezes, mais rígidos do que aparentam, e essa rigidez infiltra-se de modo subtil no encontro terapêutico, influenciando a forma como escutamos, interpretamos e intervimos.
Grande parte desta rigidez tem raízes profundas no desenvolvimento académico da psicoterapia. A investigação científica tem sido frequentemente guiada por metodologias que privilegiam a uniformidade, a replicabilidade e a categorização clara. Estes critérios são indispensáveis para produzir conhecimento robusto, mas geram limitações quando aplicados ao domínio da experiência humana, sobretudo quando se trata de perfis que fogem às normatividades implícitas nos instrumentos de avaliação. O autismo, particularmente no adulto, continua subrepresentado e, muitas vezes, mal compreendido na literatura. A consequência é evidente, construímos modelos que funcionam bem para uma parcela da população e assumimos que funcionarão de modo semelhante para todos, esquecendo que há modos de ser que não encaixam nas grelhas conceptuais que fomos habituados a usar.
O legado psicanalítico ilustra bem esta tensão. A psicanálise, sobretudo nas suas primeiras formulações, operava com pressupostos rígidos sobre estrutura, desenvolvimento e funcionamento psíquico. A neutralidade, a interpretação, a leitura simbólica e a transferência eram concebidas como instrumentos universais, aplicáveis a qualquer sujeito. Muitos terapeutas formados nesta tradição tornaram-se guardiões destes pressupostos, confiando que a verdade clínica emergiria apenas se o modelo fosse preservado. Ainda hoje sentimos a permanência de alguns desses ecos, não tanto nos conceitos em si, mas na atitude que sustenta a ideia de que o paciente deve adaptar-se ao método e não o contrário. Paradoxalmente, a própria psicanálise passou as últimas décadas a multiplicar-se em linhas diversas, a flexibilizar-se, a questionar-se. Ainda assim, algo da postura inicial permanece, como um resíduo histórico difícil de abandonar.
O mesmo se pode dizer sobre o modelo cognitivo e comportamental que, desde os anos oitenta, ganhou enorme expressão. Construído sobre evidência empírica e orientado por protocolos claros, ofereceu clareza e eficácia multicomprovada. Contudo, a sua proximidade à ciência experimental trouxe outro tipo de rigidez. Os manuais estruturados, a lógica da intervenção passo a passo e a tendência para a padronização fizeram emergir a ideia de que a mudança psicológica podia ser ensinada como um método técnico. Esta visão, ainda que útil em muitos contextos, pode tornar-se limitada quando aplicada a pessoas cujo funcionamento cognitivo, sensorial e relacional desafia as normas em que o método foi concebido. As abordagens de terceira geração trouxeram novos horizontes, introduziram flexibilidade, aceitação, consciência do momento presente, uma visão contextual da experiência humana. Mesmo assim, continuam a nascer de práticas que pressupõem um certo tipo de sujeito e um certo modo de organizar a experiência.
Isto leva-nos a uma questão incómoda, que dificilmente se resolve sem alguma honestidade clínica: será que a resistência à mudança está nos modelos ou nos terapeutas que os praticam? As teorias estão, em muitos casos, a transformar-se, a abrir espaço para renovações e complexificações. Mas os terapeutas, formados dentro de tradições específicas e avaliados segundo critérios académicos que exigem rigor, consistência e fidelidade ao modelo, podem sentir-se desconfortáveis ao afastarem-se do conhecido. A adaptação exige risco, exige admitir que se sabe menos do que se desejava, que a técnica que funcionou tantas vezes pode não ter lugar no encontro presente. Exige reaprender o gesto clínico, tal como um artesão que descobre que a agulha habitual já não serve para o tecido que agora tem entre mãos.
É frequente ouvir relatos de psicoterapeutas que, diante de pessoas autistas, descrevem a sensação de que o modelo não responde ao que ali está. Alguns dizem que sentem o desconforto de abandonar a previsibilidade do método e entrar num campo relacional que não lhes é familiar. Outros relatam um certo receio de errar, como se a ausência de referências claras os deixasse expostos. Nesta hesitação, por vezes subtil, cresce a tendência para se agarrar a estruturas rígidas, como quem aperta demasiado uma costura com medo de a ver desfazer-se.
Há também condicionantes académicos que contribuem para esta resistência. A formação psicoterapêutica é frequentemente organizada em torno de escolas, cada uma com a sua identidade, o seu corpo teórico e a sua prática validada pelos pares. Os estudantes são incentivados a dominar um modelo e a demonstrar fidelidade técnica. A inovação, embora valorizada no discurso, raramente é ensinada como competência central. O resultado é um cenário onde a fidelidade ao modelo supera, muitas vezes, a fidelidade ao paciente.
Quando pensamos na psicoterapia com pessoas autistas, percebemos o quanto este cenário se torna insuficiente. O tecido autista obriga o terapeuta a reconsiderar o fundamento da própria prática. Obriga a suspender expectativas, a ajustar o ritmo, a aceitar que a comunicação pode seguir vias que não estavam nos manuais. E obriga, sobretudo, a reconhecer que a essência da pessoa não pode ser compreendida apenas através das categorias que os modelos oferecem. É a pessoa que deve orientar o método, não o contrário.
Talvez o maior desafio esteja precisamente aqui, na capacidade do psicoterapeuta para aceitar que o seu ofício se aproxima mais de uma arte sensível do que de um procedimento técnico. Adaptar a psicoterapia às pessoas autistas não implica abandonar os modelos, implica largar a rigidez com que, muitas vezes, nos agarramos a eles. Implica reconhecer que a ciência que produzimos é valiosa, mas nunca será completa, porque a vida humana escapa sempre às suas medidas.
No fundo, talvez a pergunta não seja se os modelos são capazes de mudar, mas se nós, psicoterapeutas, nos permitimos costurar de forma diferente, escolhendo novas agulhas, novas linhas, novos pontos, sempre que o tecido que chega até nós pede outro gesto clínico.




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