Lack of Knowledge, what else!
- pedrorodrigues

- há 3 dias
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"Ignorance is the night of the mind, but a night without moon and star"
Confucio
Eu não sabia que ele era autista!! ouviu-se na sala de aulas. Esta e outras frases semelhantes são frequentemente ouvidas em diversos contextos. Seja numa situação tipica de interacção social num espaço público. Mas também numa sala de aula, local de trabalho, hospital, tribunal, etc. Sejam pessoas comuns, com ou sem formação superior, profissionais na área da educação, saúde, direito, etc., é transversal o uso desta frase por parte de todos. Facto que leva muitas das pessoas autistas perguntar se deveriam ter alguma informação colada na sua testa ou em sitio visivel para que as pessoas soubessem e tivessem a oportunidade de tomar outra acção. Ainda que me atreva a dizer que mesmo que fosse o caso, não tenho total certeza de que isso iria fazer mudar assim tanto a acção da pessoa não autista. Talvez passasse a dizer, Percebo que a pessoa seja autista, mas eu não sei como agir com a pessoa!!
Muito frequentemente digo a pais, irmãos, companheiros ou outras pessoas presentes na vida do meu cliente autista que não é preciso compreender, mas sim respeitar. Ou seja, é importante poder ter conhecimento sobre a condição, suas características e melhor forma de lidar com a pessoa. Mas ainda assim, não se deve substituir este conhecimento e muito menos confundir este conhecimento com o aceitar ou não a explicação. E como tal, é fundamental que seja respeitado. A pessoa autista tem uma hipersensibilidade auditiva? Eu devo respeitar a sua necessidade de usar fones com cancelamento de ruido! Ao invés de ficar a duvidar da real necessidade da pessoa necessitar de usar. E este exemplo pode ser perfeitamente aplicado a qualquer característica ou área de vida da pessoa autista.
A ignorância deliberada, o evitamento deliberada do conhecimento, tem implicações profundas para a responsabilidade moral. Evitar informações sobre as consequências das próprias ações desafia as explicações filosóficas sobre responsabilidade e culpabilidade legal, levantando questões sobre se isso deve ser tratado como ignorância comum. A falta de conhecimento é uma barreira significativa na saúde mental, pois contribui para o estigma, impede as pessoas de procurarem ajuda e leva a estratégias ineficazes para melhorar o bem-estar mental. Isso é agravado pela falta de conhecimento sobre os serviços disponíveis e pela incapacidade de identificar ou apoiar adequadamente as questões de saúde mental. Pesquisas sugerem que melhorar o conhecimento sobre saúde mental entre o público, nas escolas e até mesmo dentro do sistema de saúde é crucial para obter melhores resultados.
A ignorância deliberada é uma sombra que se estende sobre corredores de escolas, balcões de atendimento, gabinetes clínicos, anfiteatros universitários e salas de tribunal. Surge disfarçada de desculpa, revestida pela frase falta de conhecimento, que tantas vezes serve de escudo para justificar a incapacidade ou a recusa em ajustar práticas, acolher diferenças e assegurar direitos. Esta sombra instala-se com facilidade porque é cómoda, porque permite continuar tudo na mesma, porque afasta a responsabilidade de olhar com atenção para a pessoa que se apresenta diante de nós com um modo de estar singular, subtil, por vezes silencioso, por vezes inquieto, sempre humano.
No espectro do autismo a diversidade de perfis é vasta, mas a exigência ética é simples. A ausência de diagnóstico explícito não autoriza a ausência de sensibilidade. A falta de formação específica não legitima a falta de cuidado. A ausência de certezas não justifica a ausência de humanidade. Quando um aluno manifesta sinais de sobrecarga sensorial, não é necessário um rótulo clínico para permitir alguns minutos de respiro. Quando um funcionário precisa de previsibilidade no ambiente de trabalho, não é preciso uma certificação para ajustar a forma de comunicar. Quando um paciente tem dificuldades em tolerar longas esperas, não se exige um relatório para reorganizar prioridades. O olhar atento, informado e crítico deveria ser o ponto de partida, não o privilégio de quem já domina todas as nuances do espectro.
A ignorância deliberada falha porque confunde desconhecimento com impossibilidade. Mas desconhecer não é o mesmo que ser impedido. Pelo contrário, a falta de conhecimento deveria abrir espaço para a curiosidade profissional, para o rigor, para a flexibilidade, para a procura de orientação ou formação. Profissionais diferenciados, em qualquer área, distinguem-se pela capacidade de agir mesmo perante a incerteza, procurando minimizar riscos e maximizar inclusão. A prática ética exige movimento, e não imobilidade. Exige relação, e não distanciamento. Exige a coragem de adaptar, mesmo quando não se possui todas as respostas.
Persistir na ignorância deliberada implica aceitar um mundo mais estreito, onde as diferenças são toleradas apenas quando nomeadas de forma clara e visível. Implica aceitar a exclusão subtil, a injustiça quotidiana, o sofrimento evitável. Implica esquecer que cada pessoa, autista ou não, comunica de forma única, sente de forma única, precisa de apoios próprios que não dependem exclusivamente de diagnósticos formais, mas de uma leitura sensível do contexto.
O desafio é colectivo. Nenhum de nós deve ser limitado pela falta de conhecimento, e muito menos aqueles que desempenham papéis de responsabilidade nas instituições que moldam a vida social. A inclusão não nasce da perfeição técnica, nasce da disposição para ver e para agir. Nasce da capacidade de reconhecer que cada encontro é uma oportunidade para fazer melhor. Nasce da recusa em permitir que a ignorância, voluntária ou não, silencie direitos que deveriam ser garantidos, independentemente do que está ou não escrito num processo clínico.
A ignorância deliberada pode ser cómoda, mas a dignidade exige inquietação. A sociedade cresce quando escolhe essa inquietação, quando decide olhar novamente, quando se permite aprender e ajustar. E é nesse gesto contínuo, prudente e sensível, que se inscreve o verdadeiro compromisso com a diferença.




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