ToM
- pedrorodrigues

- há 5 dias
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Olá a todos. Este é o ToM, um elefante que acabou de entrar numa loja de porcelanas! Apesar da delicadeza habitual do ToM, é possível verificar-se alguns incidentes. Até porque nem sempre as porcelanas são bem arrumadas. Sendo que a responsabilidade não deve ser sempre atribuída ao elefante. O ToM é conhecido de muitos, habitualmente designado por temos um elefante na sala, conhece? Contudo, apesar de muitos dizerem que o conhecem, parece que poucos o querem reconhecer. Por exemplo, temos um elefante na sala, mas ninguém quer falar sobre ele, recorda-se?
Claro que não vou falar de nenhum elefante numa loja de porcelanas, ainda que frequentemente falar sobre alguns assuntos dentro do autismo se assemelhe a tal. Mas aproveitando o nome do elefante, irei procurar falar da Teoria da Mente (ToM). E com esta teoria, tal como no exemplo anterior do elefante, parece que muitos percepcionam o elefante, mas depois poucos querem falar sobre ele. E falar sobre ele, neste caso a Teoria da Mente, significa não tomar um caminho polarizado de, a Teoria da Mente faz todo o sentido na explicação do autismo ou a Teria da Mente não faz nenhum sentido, está descredibilizada, provada como não existente, etc. Por norma, a ideia de termos a certeza absoluta e esta explicar tudo deve fazer-nos suspeitar à partida de que algo não deverá estar bem no processo.
Como tal, torna-se evidente que a própria noção de uma condição unificada na teoria da mente aplicada ao autismo carece de precisão conceptual. A literatura tem frequentemente tratado a ToM como uma faculdade monolítica, quando na realidade ela parece desdobrar-se em múltiplos subprocessos que incluem a monitorização atencional de pistas sociais, a capacidade de imaginar estados mentais alheios, a integração contextual e a regulação de inferências internas em função de informação ambígua. A pergunta que se impõe é se as diferenças observadas em pessoas autistas refletem realmente um comprometimento específico e isolado ou, em alternativa, se emergem de uma interação mais vasta entre mecanismos cognitivos de ordem geral e estilos cognitivos particulares.
A crítica recente sugere que grande parte do que se atribuiu a dificuldades de inferência mentalista pode decorrer de variáveis não mentalistas, como diferenças na priorização da informação social, diferenças no processamento sensorial ou uma menor previsibilidade dos contextos sociais que são tipicamente pressupostos pelas tarefas tradicionais. Se a ToM depende, pelo menos parcialmente, de processos que organizam a atenção, filtram estímulos e constroem representações coerentes a partir de ambientes ruidosos, então é plausível que muitos achados sobre o autismo reflitam diferenças a montante, e não necessariamente um défice específico na atribuição de estados mentais.
Além disso, as tarefas clássicas usadas para medir a ToM foram construídas num quadro cultural e pragmático que privilegia formas neurotípicas de comunicação e interpretação. Isto levanta a possibilidade de que as supostas dificuldades não revelem uma incapacidade, mas antes um desajuste entre o modo como a tarefa está estruturada e o modo como pessoas autistas constroem significado social. De certa maneira, medir a ToM desta forma equivale a avaliar compreensão linguística num falante bilingue recorrendo apenas a marcadores idiomáticos de uma das línguas. O resultado poderá sugerir uma limitação que não existe quando se altera o enquadramento avaliativo.
É neste ponto que a análise crítica ganha profundidade teórica. Se a hipótese da ToM no autismo pretende descrever um mecanismo cognitivo, então os próprios instrumentos que o medem têm de ser sensíveis aos processos psicológicos subjacentes e não meramente ao desempenho comportamental em contextos altamente específicos. A revisão contemporânea mostra que muitos testes falham precisamente neste requisito, apresentando variações mínimas de sensibilidade processual e uma forte dependência de inferências sobre estados internos que não são diretamente mensuráveis. Como resultado, corremos o risco de perpetuar uma narrativa deficitária sustentada em medidas que não captam a diversidade cognitiva autista.
A partir deste panorama torna-se relevante conceber um enquadramento alternativo que considere a ToM não como um módulo de inferência mental estático, mas sim como um conjunto de competências emergentes que se articulam com motivações, experiências e contextos sociocomunicativos específicos. Um modelo deste tipo admite que diferenças na ToM possam derivar de trajetórias de desenvolvimento distintas, da adaptação a ambientes que historicamente não acolheram a diversidade neurológica, ou ainda de estilos cognitivos que privilegiam a previsibilidade e a clareza sobre a ambiguidade social.
As propostas mais inovadoras apontam precisamente para a necessidade de desenhar modelos psicocognitivos que incluam mecanismos de aprendizagem social ao longo do tempo, que integrem o papel da previsibilidade ambiental e que considerem as preferências individuais como parte constitutiva, e não periférica, da experiência social autista. Esta abordagem permite deslocar o foco de uma presunção de falha interna para a compreensão das interações entre o indivíduo, o contexto e as estratégias que este desenvolve para navegar o mundo social.
Ao reinterpretarmos a hipótese da ToM à luz destes elementos, abrimos caminho a intervenções mais precisas. Em vez de treinar competências mentalistas desconectadas da realidade vivida, torna-se possível desenvolver programas que explorem estilos comunicacionais compatíveis com o perfil cognitivo do indivíduo, que promovam a co-construção de significado e que apoiem a leitura de sinais sociais sem impor a normatividade neurotípica. A investigação recente demonstra que quando as tarefas são adaptadas à forma de processamento característica de cada pessoa, o desempenho de indivíduos autistas aproxima-se substancialmente do de indivíduos neurotípicos, o que sugere que a diferença está menos na capacidade e mais na arquitectura interactiva das situações avaliadas.
Neste sentido, a crítica contemporânea não procura negar que existam diferenças reais na forma como pessoas autistas interpretam estados mentais. Procura antes compreender estas diferenças de maneira mais fina, rigorosa e contextualizada, reconhecendo que uma teoria psicológica válida precisa de corresponder à complexidade do fenómeno humano. A reconceptualização da hipótese da ToM constitui por isso não apenas uma revisão metodológica, mas também uma transformação filosófica na forma como se pensa a cognição social no autismo.
Quando falamos de teoria da mente estamos a falar da capacidade de imaginar o que outra pessoa pode estar a pensar ou a sentir. Durante muitos anos foi dito que as pessoas autistas teriam uma dificuldade específica nesta capacidade, como se houvesse uma parte da mente dedicada apenas a isto e que funcionaria de forma diferente no autismo. Esta ideia ajudou a explicar alguns desafios na comunicação e na leitura de sinais sociais, mas tornou se cada vez mais claro que a história é mais complexa do que parecia.
O que a investigação mais recente mostra é que muitas das diferenças observadas não significam falta de capacidade. Muitas vezes significam antes um modo diferente de compreender o mundo. As tarefas usadas para medir teoria da mente foram construídas a pensar em estilos de comunicação típicos, o que pode colocar quem é autista numa posição injusta. Quando a forma de avaliar muda e quando os contextos são mais previsíveis e claros, muitas pessoas autistas mostram uma compreensão social tão rica como qualquer outra pessoa. Isto sugere que o problema não está dentro da pessoa, mas na forma como o ambiente foi desenhado.
É importante também perceber que a compreensão social não é uma coisa única. Envolve atenção, interpretação de pistas, experiência prévia, conforto com a situação e até o tipo de energia disponível nesse momento. Cada pessoa autista tem a sua própria forma de juntar estas peças e essa diversidade de estratégias não é um erro do sistema. É uma forma legítima de estar no mundo, com pontos fortes que muitas vezes passam despercebidos.
Há, portanto, uma mudança profunda na forma como se olha para a teoria da mente no autismo. Em vez de se assumir que existe um défice, começa se a compreender que existe uma diferença. Essa diferença é influenciada pelo modo como a sociedade comunica, pelas exigências das situações sociais e pelo grau de clareza ou ambiguidade que cada contexto exige. Quando estes factores são ajustados, as capacidades emergem de forma mais natural e menos desgastante.
A mensagem de esperança nasce aqui. O conhecimento está a avançar no sentido de respeitar a experiência autista em vez de tentar encaixá la em moldes que nunca foram feitos à sua medida. A psicologia contemporânea procura agora criar ambientes mais claros, relações mais autênticas e formas mais inclusivas de comunicar. Isto significa que o futuro das intervenções e do entendimento social não passa por corrigir quem é autista, mas por construir espaços onde cada pessoa possa expressar o seu próprio modo de compreender os outros e ser compreendida. É neste encontro, mais humano e mais justo, que se abre caminho para relações mais leves, mais verdadeiras e mais possíveis.




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