Picky season
- pedrorodrigues

- há 3 dias
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Não comeste sequer uma garfada do bacalhau da avó! Não gostas de polvo? Não sabia que eras vegetariano! Ou que não gostavas da comida toda junta no prato! Ou com molho por cima! O peru fica seco se não levar o molho que a mãe sabe preparar! Vais ter de comer os sonhos de cenoura que a tia trouxe! Pelo menos uma azevia de grão! Não me digas que não ficas na ceia de Natal até ao fim!
Muitos de vocês já ouviram e outros já repetiram estas frases. Se for assim, provavelmente na vossa família uma das pessoas poderá estar dentro do espectro do autismo e apresentar algumas características de restrição alimentar e/ou hipersensibilidade olfactiva, sonora, gustativa, etc., a determinados alimentos.
Isto para além dos desafios de estar numa mesa rodeado de pessoas a conversar sobre assuntos relacionados com as festividades, circunstanciais, que não fazem nenhum sentido à pessoa autista em questão. Sendo que muitas das vezes este tipo de atitude é sentido como falta de educação, arrogância, capricho, etc., quando não tem nada a ver com isso.
A alimentação no espectro do autismo constitui um domínio clínico complexo, multifactorial e frequentemente subestimado. Muitas pessoas autistas apresentam padrões alimentares particulares que envolvem seletividade marcada, sensibilidade sensorial oral, aversão a determinados aromas, texturas ou temperaturas e necessidade de rotinas previsíveis durante as refeições. Estas características não representam capricho, desinteresse ou falta de educação. Reflectem, pelo contrário, uma forma distinta de processar estímulos internos e externos, com repercussões reais na saúde física, emocional e social.
A literatura científica mostra que as crianças autistas têm uma probabilidade significativamente superior de manifestar dificuldades alimentares quando comparadas com crianças não autistas. Estima-se que uma parte expressiva consuma apenas um conjunto muito reduzido de alimentos, com preferência por hidratos de carbono refinados ou opções de sabor neutro, como pão branco ou produtos processados. Em algumas situações, a recusa persistente de determinados grupos nutricionais pode originar carências importantes de cálcio, ferro, vitaminas e proteínas, problemas gastrointestinais, alterações do peso e maior vulnerabilidade psicológica. Relatórios parentais indicam que estes comportamentos podem despontar em fases muito precoces do desenvolvimento e permanecer estáveis ao longo da vida.
O impacto não é apenas biológico. A alimentação é um espaço de socialização, pertença e simbolismo cultural. Jantares de família, almoços de trabalho, encontros entre amigos ou rituais festivos assentam frequentemente na partilha de refeições. Para muitas pessoas autistas, estes contextos podem gerar ansiedade intensa, medo de ser julgadas, sobrecarga sensorial, pressão para experimentar alimentos não tolerados e sensação de inadequação social. Assim, ambientes que pretendem promover união podem, involuntariamente, produzir exclusão.
Esta realidade torna-se ainda mais evidente em períodos festivos como o Natal ou o Dia de Ação de Graça. As mesas abundantes, as receitas tradicionais, os convívios prolongados, os espaços cheios de estímulos sensoriais, a mudança das rotinas e as expectativas culturais relacionadas com a celebração intensificam os desafios. O que para a maioria representa prazer e nostalgia pode transformar-se num cenário extenuante para uma pessoa autista. A pressão familiar para provar determinados pratos, a insistência em manter etiquetas sociais rígidas ou a falta de alternativas alimentares adequadas pode gerar sofrimento significativo.
Importa ainda reconhecer que dificuldades alimentares podem coexistir com outras condições do neurodesenvolvimento, como a perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Em alguns casos, a impulsividade, a dificuldade em autorregular o apetite ou a menor capacidade de planear refeições saudáveis podem agravar o quadro alimentar. Isto reforça a necessidade de uma avaliação integrada, sensível às especificidades de cada pessoa.
Perante este cenário, a sensibilização familiar torna-se fundamental. Não apenas da família nuclear, mas também de familiares alargados que participam nos encontros festivos. Conhecer as características alimentares associadas ao autismo promove empatia e previne julgamentos precipitados. A adaptação não implica alterar toda a celebração. Exige apenas inclusão consciente. Oferecer alternativas alimentares seguras e previsíveis, permitir que a pessoa escolha onde e com quem se senta, reduzir ruído e estímulos, evitar comentários críticos, respeitar preferências alimentares e não forçar a experimentação são estratégias simples, mas profundamente transformadoras.
O espírito natalício assenta na aceitação, na partilha e no cuidado. Integrar as necessidades alimentares de pessoas autistas é um gesto ético, humanista e coerente com esses princípios. A verdadeira celebração não depende da uniformidade à mesa, mas da possibilidade de cada pessoa participar com conforto, dignidade e autenticidade. Ao criar espaços familiares informados, flexíveis e inclusivos, aproxima-se a experiência festiva do ideal de comunidade que tantas vezes proclamamos, mas que só se concretiza quando olhamos o outro na sua totalidade.




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