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Vergonha?! Qual vergonha!?

A minha vida pode ser dividida em dois momentos diferentes marcados por duas frases muito frequentemente repetidas por mim. A primeira, Eu fiz mal. E a segunda, Eu estou errado, diz Ismael (nome fictício). A minha história poderá ser contada de muitas formas e por pessoas diferentes. Mas o certo é que estas duas frases me acompanham e atormentam a vida inteira, refere. A primeira frase foi sendo usada até eu ter catorze ou quinze anos. E foi sendo explicada como eu não sabendo fazer as coisas bem feitas, ser trapalhão, desajeitado, desinteressado, entre outros adjectivos. A segunda passou a ser usada a partir daí porque já não fazia sentido eu não saber fazer as coisas. E a explicação passou a ser mais relacionada com a minha rigidez e inflexibilidade, também chamada de teimosia, incapacidade de aceitar a versão ou a ajuda dos outros. Uma coisa é certa. A partir de determinada altura passei a comparar-me mais e com mais detalhe com os outros e passei a ter um sentimento de vergonha sempre presente, conclui.


Não tens vergonha na cara?, perguntava-lhe a mãe em pequeno. Ismael (nome fictício) não percebia sequer a pergunta e muito menos onde é que na cara estaria a vergonha. Sabia onde estava a boca, o nariz e os olhos, mas não a vergonha. Cada vez que Ismael molhava a cama de noite o pai dizia-lhe, Vais ver que amanhã levas a roupa suja para a escola para ver se te envergonhas! O Ismael continua sem perceber, e muito menos como é que o facto de levar a roupa o faria sentir vergonha. Além de não perceber porque é que o pai não dizia que a vergonha estaria na cara, tal como a sua mãe costumava dizer.


Numa cultura Judaico-Cristã como a nossa, a vergonha parece estar culturalmente muito enraizada. E desde pequeno que ouvimos a palavra a associado ao facto de estarmos a fazer alguma coisa errada ou má. Sendo que a vergonha é vista como um sentimento que quando sentido e de forma mais intensa leva a que a pessoa queira corrigir esse seu comportamento. Mas a pessoa também pode sentir vergonha sem motivo algum.


O certo é que a vergonha, enquanto fenómeno complexo e multifacetado, considerada como uma emoção que normalmente se concentra no self, uma vez que o objecto intencional é a pessoa que a sente. A vergonha pode levar a uma série de desafios à saúde mental, incluindo depressão e ansiedade. Além de também poder dificultar a aproximação com as outras pessoas. Por exemplo, algumas pessoas chegam a ficar tão paralisadas de vergonha que não conseguem ser produtivas no trabalho ou na escola.


Os pais do Ismael, durante todos estes anos, mesmo depois de saberem do diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo do filho, continuavam-se a perguntar - Mas este rapaz não sente vergonha? Mas não há nada que ele diga ou faça que o envergonhe? Ismael era aquela criança que na fila do supermercado dizia sem qualquer aparente problema que a pessoa da frente na fila cheirava mal. E mesmo depois dos pais o repreenderem, eles sim cheios de vergonha, o Ismael limitava-se a dizer, Mas é verdade, o senhor da frente cheira mal. E depois mais tarde na adolescência era o jovem que dizia à sua namorada que o corte de cabelo dela lhe fazia parecer uma caniche. E que mesmo depois dela ter ficado a chorar, Ismael continuava sem perceber e a dizer que não percebia por que é que as pessoas se aborreciam dele falar a verdade. Ou então na Universidade quando confrontava alguns dos professores dizendo que alguma das coisas que tinham acabado de falar não faziam sentido algum. Os seus pais não se cansavam de perguntar - Mas não há nada que o envergonhe? E será que a vergonha é um sentimento existente no autismo? Ainda que não goste desta formulação absolutista, até porque a resposta mais acertada é de que há vergonha no autismo. A questão em si não deixa de fazer sentido em ser colocada. É de notar que nas pessoas autistas em que existe uma perturbação de ansiedade social, a probabilidade de haver o sentimento de vergonha é maior. Mas em outras situações, a dúvida parece fazer mais sentido em ser colocada. Até porque ao longo de todos estes anos sempre se ouviu o Ismael a exclamar - Eu não me interessa o que é que os outros pensam sobre mim! No entanto, também se conhece outras pessoas autistas que funcionam de uma forma completamente oposta e sempre demonstram um grande incómodo com o facto de pensarem naquilo que os outros poderiam estar a pensar acerca de si. Ao ponto de muitas das vezes não terem conseguido realizar muitas das suas actividades.


Em psicologia, e mais especificamente em psicoterapia, o sentimento de vergonha é algo muito recorrente e em situações clinicas diferentes. Seja na depressão, ideação suicida, ansiedade, perturbações da conduta alimentar, perturbação de stress pós-traumático, abuso de substâncias, psicose, etc. A vergonha, juntamente com a culpa e o constrangimento, pertence a uma família de emoções que têm sido chamadas as emoções auto conscientes. Estas emoções são no entanto, a vergonha ocorre quase sempre na presença do outro ou de outros imaginados que nos fazem focar em relação a nós. Quando devidamente experimentado, a vergonha pode ser um modulador da relação interpessoal, no entanto, se for negado em si mesmo ou não for acedido de forma significativa, pode levar a desligar-se no domínio emocional e relacional. A culpa ocorre quando uma pessoa atribui um resultado negativo a um comportamento específico ou transgressão, enquanto que a vergonha ocorre quando os resultados negativos são atribuídos a todo o self.


A vergonha é uma emoção social normal que ocorre na matriz interpessoal e afecta directamente a forma como se conecta com o mundo exterior. O desenvolvimento e perspectiva evolutiva da vergonha vê-a como um marcador do desejo social de cada um

e um alarme para uma possível perda de atractividade social.


As emoções auto conscientes, tais como a culpa e a vergonha, são emoções complexas que requerem autorreflexão e autoavaliação, e são pensados para facilitar a manutenção de normas sociais e padrões pessoais. Em primeiro lugar, as emoções auto conscientes estão fortemente conectadas para, e parecem surgir de, padrões externos, que incluem convenções, regras e valores socialmente construídos que as crianças devem aprender. Em segundo lugar, emoções auto conscientes exige a consciência de si mesmo em relação àqueles padrões, incluindo como o comportamento de alguém é visto por outros. Por último, as emoções auto conscientes são necessários para a realização de objetivos sociais complexos, incluindo o envolvimento em comportamentos apropriados com outros.


O facto da vergonha poder ser compreendida nesta relação complexa, podemos pensar por que é que em algumas pessoas autistas este sentimento de vergonha pareça estar ausente. A forma e a importância de compreender o Outro e aquilo que ele pensa sobre nós leva a integrar de uma forma menos vincada a importância do sentimento de vergonha.


A vergonha é uma emoção natural e valiosa que ocorre mais frequentemente quando alguém não cumpre os seus ideais ou padrões. E assim, podemos compreender que a sua existência possa servir o propósito de corrector do comportamento social, principalmente do mais atípico ou desviante. A ideia de que a vergonha que nos faz sentir uma dor e sofrimento psicológico lancinante nos irá levar a procurar corrigir aquilo que fizemos de errado e que nos causou este sofrimento. E em determinada altura da nossa vida e dependendo daquilo que vão sendo as nossas escolhas podemos sentir vergonha daquilo que somos - seja da nossa etnia, género ou condição. Por exemplo, a pessoa autista que sente vergonha de o ser. E em parte porque sente que este seu ser não vai ao encontro de um padrão societal que está pré definido. E não porque a pessoa não tenha um sentimento de ideais morais.


Quando sentimos vergonha, sentimos uma tensão entre a nossa própria conceção e a nossa identidade. Mais especificamente, nós sentimos que alguma característica da nossa identidade eclipsou, ofuscou a nossa auto concepção, ou seja, a forma como nos representamos a nós próprios.


O Ismael durante muito tempo não sentiu vergonha. Eu não percebia as coisas daquela forma, disse. Para mim as coisas estavam bem feitas, continua. Eu achava que era assim que as coisas deviam ser feitas e fazia-as, comenta. O dia em que percebi de forma mais aprofunda o que significava a vergonha foi quando eu passei a senti-la. É verdade que pensei, maldita a hora em que fui tentar perceber melhor o que era a vergonha. Mais valia continuar ignorante. Mas não é verdade, refere. Tem sido importante poder perceber o porquê disto ou aquilo que faço e que em alguns momentos possa sentir vergonha. Pelo menos, agora sinto porque é que sofro. Antes nem isso!



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