Mãe, que tipo de cogumelo é este?
- pedrorodrigues
- há 11 minutos
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"Picture yourself in a boat on a river
With tangerine trees and marmalade skies
Somebody calls you, you answer quite slowly
A girl with kaleidoscope eyes"
Lucy in the sky with diamonds, The Beatles
Acordou com bastante dificuldade hoje de manhã? Sentiu que não estava capaz de fazer mais nada senão emitir alguns sons e ditongos dispersos e sem sentido? Mas ao fim de ter ingerido o primeiro café da manhã sentiu um fervor energético qualquer, equiparado a uma força sobrenatural que o fez sentir capaz de enfrentar o transito da manhã e as primeiras horas de trabalhado até ao próximo café?
Seja café, matcha ou outras substâncias legais, mas também ilegais, são várias as que são utilizadas por várias pessoas para ajudar a diminuir ou aumentar determinados aspectos do nosso sentir e comportamento. Seja porque queremos diminuir o nosso cansaço e aumentar a nossa energia. Ou porque queremos diminuir a nossa ansiedade e aumentar a nossa desinibição comportamental. Mas também porque nos queremos sentir evadidos de uma determinada realidade difícil de suportar. Ou uma simples dor de cabeça ou principio de enxaqueca. Seja porque razão for, são várias as situações que algumas pessoas optam por algumas destas estratégias e soluções. Contudo, se algumas destas situações podem ser esporádicas e espaçadas no tempo. Outras há que são mais recorrentes e derivadas de algumas condições psiquiátricas, tais como a ansiedade e a depressão, ou situações de desregulação comportamental. E nestes casos é importante poder compreender quais os impactos que a ingestão de determinadas substâncias legais ou ilegais podem ter na pessoa. Nomeadamente, neste último grupo de pessoas, é habitual que muitas delas façam à priori intervenção farmacológica que pode ter uma interacção com algumas destas substâncias e alterar o seu efeito terapêutico.
O nosso gosto por substâncias, sejam aquelas legais, mas também as não legais (i.e., psicoativas) é atestado nos primeiros registos humanos. Historicamente, no caso das substâncias psicoativas, estas têm sido utilizadas por (i) sacerdotes em cerimónias religiosas (e.g., amanita muscaria); (ii) curandeiros para fins medicinais (e.g., ópio); ou (iii) pela população em geral de uma forma socialmente aceite (e.g., álcool, nicotina e cafeína). Os nossos antepassados viviam como caçadores-colectores e, como demonstrado pela cultura de grupos humanos que mantiveram esse estilo de vida (e.g., aborígenes australianos, índios da Amazónia ou bosquímanos do deserto do Kalahari), sem dúvida recolheram informações consideráveis sobre plantas farmacológicas. Um outro exemplo, Ötzi, o homem cujo corpo congelado foi recuperado nos Alpes em 1991, viveu cerca de 3300 anos a.C. e carregava na sua bolsa uma farmácia de viagem que incluía um fungo poliporo com propriedades antibacterianas e hemostáticas. Após adoptarem um estilo de vida pastoril, os humanos podem ter observado os efeitos das plantas psicoativas nos seus rebanhos. Diz a tradição que os padres etíopes começaram a torrar e ferver grãos de café para permanecer acordados durante as noites de oração, depois que um pastor notou como as suas cabras brincavam após se alimentarem de arbustos de café.
Algumas substâncias têm sido utilizadas como medicamentos ao longo da maior parte da história da humanidade. Por exemplo, o uso medicinal do ópio é descrito nos primeiros registos escritos. O Nepenthes pharmakon é mencionado no século IX a.C. na Odisseia de Homero. Está escrito que Helena de Tróia recebeu esta poção de uma rainha egípcia e que a utilizou para tratar os guerreiros gregos. Desde o século XVIII, a maioria dos exegetas acredita que essa poção era preparada a partir do ópio. Curiosamente, essa preparação é qualificada como um pharmakon, ou seja, um medicamento, no original grego. De acordo com a etimologia, nepenthes seria um ansiolítico ou um antidepressivo na linguagem actual. É consenso geral que os sumérios cultivavam papoilas e isolavam o ópio das cápsulas das sementes no final do terceiro milénio a.C. Já mais recentemente na história, Griesinger (1817-1868), psiquiatra alemão, um dos fundadores da psiquiatria moderna, recomendava o uso do ópio no tratamento da melancolia.
Como podemos compreender, não é de agora que pensamos e usamos determinadas substâncias para a intervenção e/ou tratamento de determinada situação de saúde física e mental. Ainda a semana passada foi publicado em Portugal as Recomendações do grupo de trabalho multidisciplinar e profissional sobre o uso clínico de substâncias psicadélicas.
No caso do autismo, também não tem sido excepção, seja a partir do uso de canabinóoides para a intervenção em determinados comportamentos e sintomas, mas também através do recurso a psicadélicos. Por exemplo, não é assim tão incomum ouvirmos de uma pessoa com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo que faz uso de cannabis para poder sentir melhorias ao nível da sua ansiedade. Assim, como também não é estranho ouvirmos pais e mães a dizerem que usaram CBD com os seus filhos autistas e que observaram mudanças significativas no seu comportamento. Contudo, uma coisa é a pessoa dizer que faz um determinado consumo por sua iniciativa para sentir que melhora determinado aspecto na sua vida e quotidiano (e.g., cannabis, álcool, etc.). Outra questão é o uso de algumas destas substâncias de forma controlada e prescrita por um médico. Até porque se verifica que o uso de determinadas substâncias (e.g., cannabis) potencia significativamente o surgimento de episódios psicóticos, principalmente em pessoas com uma maior predisposição para o desenvolvimento de perturbações psiquiátricas. Logo, numa população como as pessoas com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, em que a regra e não a excepção, são precisamente a existência de comorbilidades psiquiátricas, é fundamental avançarmos com o devido cuidado e sempre informado pelas orientações médicas clinica e cientificamente comprovadas.
Além do mais, é preciso compreender que ainda não existem compostos específicos para tratar os sintomas centrais do PEA ou a sua progressão. Vários medicamentos convencionais, tais como antipsicóticos atípicos, ansiolíticos, estimulantes e inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS), têm sido utilizados para aliviar alguns sintomas e comorbilidades frequentemente associadas à PEA. Estes efeitos benéficos não específicos devem ser equilibrados com os efeitos adversos comuns e a baixa adesão causados por estes medicamentos. É essencial enfatizar que a intervenção precoce pode melhorar o resultado clínico de crianças autistas. Dado o aumento da prevalência e os elevados custos económicos e sociais associados à PEA, são necessárias novas abordagens farmacológicas e alvos moleculares para elucidar e optimizar o tratamento na PEA, que é frequentemente limitado. Consequentemente, existe um interesse crescente em investigar o CBD para a vasta sintomatologia da PEA, uma vez que este composto pode apresentar um perfil terapêutico para condições psiquiátricas associadas a esta condição.
Além disso, o provável envolvimento do sistema endocanabinóide na fisiopatologia da PEA é objecto de investigações extensas. Resultados consistentes da disfunção endocanabinóide em modelos animais da PEA e estudos clínicos foram demonstrados. Apesar dos resultados promissores do uso do CBD em pessoas autistas, há poucas discussões sobre suas interações com outros medicamentos, efeitos colaterais e a seleção de pacientes que poderiam beneficiar de seu uso. Entretanto, surgem evidências anedóticas concomitantemente com a procura por formulações de CBD, que muitas vezes não passam por rigor científico. Dada a complexidade da PEA, é evidente a urgência de desenvolver tratamentos eficazes e seguros, ao mesmo tempo em que se conduzem abordagens responsáveis e críticas a medicamentos que podem ter efeitos terapêuticos, como é o caso do CBD.
No caso dos psicadélicos, estes estão actualmente a passar por um ressurgimento da investigação científica, seguindo os passos da investigação pioneira de meados do século XX. Embora o termo psicadélico abranja uma variedade de compostos, a presente revisão concentra-se nos psicadélicos serotonérgicos, ou clássicos, que produzem os seus efeitos alucinógenos através do receptor serotonina 5-HT2A. Investigações clínicas e pré-clínicas recentes demonstram que os psicadélicos podem ter valor terapêutico no tratamento de algumas das principais características da PEA. Contudo, apesar do surgimento de investigações convincentes, os primeiros ensaios clínicos realizados nas décadas de 1960 e 1970 revelaram uma variedade de efeitos colaterais após a administração experimental de psicadélicos a crianças autistas. Portanto, os riscos associados ao uso desses compostos devem ser cuidadosamente examinados ao considerar o seu potencial uso em pessoas com uma perturbação do neurodesenvolvimento.
Apesar do crescente interesse da sociedade e do aumento do número de publicações e declarações favoráveis aos canabinóides nos media, as evidências actuais sobre a eficácia dos canabinóides ainda são escassas. Os resultados de revisões publicadas anteriormente, meta-análises sugerem que ainda não há evidências suficientes para recomendar a prescrição de canabinóides para perturbações mentais em crianças, adolescentes e jovens adultos. O crescente interesse na terapia com canabinoides, juntamente com as tendências emergentes na medicina psicadélica, ressalta a necessidade crucial de estudos científicos bem conduzidas e rigorosos, com protocolos padronizados e medidas de resultados, especialmente em populações jovens, onde as considerações neurodesenvolvimentais são fundamentais. Como tal, é fundamental que as decisões de uso de CBD ou psicadélicos na população com uma perturbação do neurodesenvolvimento possa ser tomada conjuntamente com um médico especialista e que aconselhe, mas também possa ter condições para seguir a pessoa no caso desta ir fazer uso de algumas destas substâncias.

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