Autismo? Psicose? Sintomas prodrómicos?
- pedrorodrigues
- há 12 minutos
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Assustou-se, certo? Olhou de repente e pensou que seriam dois gatos unidos num só, correcto? Voltou a olhar para ter a certeza que não estava a ver mal, não foi?
As alterações perceptivas são situações que ocorrem quando há uma mudança na forma como percebemos ou interpretamos estímulos sensoriais. Sendo que estas mesmas alterações podem ocorrer devido a diversos factores, tais como consumos de substâncias, perturbações psiquiátricas, estados emocionais intensos, etc. Ou seja, podemos perceber que estas e outras alterações podem ocorrer em pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, mas também em pessoas com uma Psicose. E tal como a imagem dos gatos, num olhar mais repentino pode levar-nos a uma ideia que pode não representar a realidade. Algo que também os profissionais de saúde poderão estar enviesados a quando da sua avaliação das situações clinicas. Nomeadamente, quando podem estar a avaliar pessoas com suspeita de uma Perturbação do Espectro do Autismo ou de uma Psicose. Sendo que há apresentações das situações clinicas que não nos deixam dúvidas, mas nem sempre é essa a realidade.
Paulo (nome fictício), de 22 anos, vive numa área urbana com os pais e uma irmã mais nova. Foi diagnosticado durante a infância com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), sem deficiência cognitiva ou linguística. Quando criança, era calmo e tranquilo, com acessos de raiva ocasionais. Sempre demonstrou dificuldades com os colegas e pouca habilidade de comunicação. Nunca construiu relacionamentos significativos. Não possui amigos e nunca teve, sendo sua interação social mais significativa a conversa com algumas pessoas no parque. É um utilizador muito regular de dispositivos tecnológicos, fotografia e pelo sistema de transporte público local, e frequentemente usa tampões de ouvido devido à alta reactividade a sons. Após concluir o ensino secundário, entrou num programa ocupacional para pessoas autistas, mas teve dificuldades em encontrar algo que funcionasse para ele. Aos 20 anos, começou a utilizar intensivamente as redes sociais: passou a passar horas a verificar o perfil do Instagram de uma rapariga que o tinha rejeitado vários anos antes, convencido de que alguns conteúdos que ela publicava eram dirigidos a ele. Ainda assim, ele concordava que as suas crenças eram improváveis ao discuti-las com o seu terapeuta. O psiquiatra responsável pelo tratamento levantou a hipótese de uma psicose emergente, mas, por outro lado, considerou que os sintomas ainda podiam ser explicados no contexto da PEA, pelo que não foi prescrita terapia antipsicótica. Nas semanas seguintes, no entanto, Paulo perdeu progressivamente a capacidade de ajustar as suas crenças quando confrontado com evidências e ganhou certeza de que a rapariga queria prejudicá-lo a ele e à sua família. Ele desenvolveu, assim, uma delírio persecutório que rapidamente envolveu os vizinhos, os utilizadores do parque e a polícia e começou a mostrar comportamentos agressivos em relação aos pais. Ele foi internado compulsivamente e iniciou tratamento antipsicótico. Devido à eficácia limitada e à baixa tolerância, foram tentados vários agentes antipsicóticos, e foram necessários tratamentos hospitalares recorrentes durante um período de oito meses.
O caso do Paulo é um entre vários de pessoas autistas e que em determinada altura desenvolvem algum tipo de alteração ou agudização de sintomas já pré-existentes e que precisa de ser equacionado a possibilidade de um primeiro episódio psicótico, de sintomas psicóticos prodómicos, ou do surgimento de um quadro psicótico. Apesar das evidências que sugerem um aumento das taxas de psicose em pessoas autistas, a detecção de sintomas psicóticos prodrómicos, é ainda pouco explorada nesta população. Os sintomas pródomos é um sinal ou grupo de sintomas que pode indicar o inicio de uma perturbação antes que os sintomas específicos que são conhecidos surjam. Ou seja, no caso dos sintomas psicóticos prodómicos numa pessoa com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo seriam os sinais que surgiam e antecipariam o surgimento de uma psicose.
E atendendo a que no espectro do autismo podemos observar ao longo da vida todo um conjunto de comportamentos mais complexos e atípicos. A dúvida se estes comportamentos podem ser apenas enquadrados no espectro do autismo ou se fazem parte de algo mais abrangente e complexo como um quadro de psicose parece fazer sentido.
É importante centrar a idade de surgimento deste tipo de situações. A adolescência (entre os 10-19 anos) é um período de desenvolvimento crítico para o aparecimento de numerosos sinais de alerta pré-mórbidos associados a perturbações mentais graves, incluindo a psicoses. Ainda que de uma forma preocupante se continue em muito a ouvir, nomeadamente de profissionais de saúde, que este ou aquele comportamento é típico da fase da adolescência e que depois irá passar. As perturbações psicóticas são muitas vezes precedidas por trajectórias de desenvolvimento atípicas e por uma fase prodrómica habitualmente designada por alto risco clinico para a psicose. Esta descreve uma condição clínica caracterizada por sintomas psicóticos subliminares, associados a um risco acrescido de desenvolver uma perturbação psicótica completa nos 2-5 anos subsequentes.
Este quadro clinico engloba três subgrupos clínicos distintos, de acordo com a literatura: Síndrome Psicótica Atenuada, Sintomas Psicóticos Breves (e Limitados) Intermitentes e Síndrome de Risco Genético e Deterioração. Entre estas, a primeira é a mais prevalecente e é actualmente reconhecida como o mais forte preditor clínico de conversão para psicose na população em geral. A Síndrome Psicótica Atenuada foi introduzida no apêndice de Investigação do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5) em 2013, e é caracterizada por delírios atenuados, alucinações ou discurso desorganizado que ocorrem pelo menos uma vez por semana durante o último mês, mas que não são suficientemente graves para atingir o limiar de diagnóstico de uma perturbação psicótica.
A deteção desta síndrome desempenha um papel fundamental na identificação do estado de alto risco clinico para a psicose e permite intervenções preventivas atempadas, que podem reduzir a probabilidade de progressão para psicose e melhorar os resultados a longo prazo. A identificação precoce da Síndrome Precoce Atenuada é particularmente importante para populações vulneráveis com condições pré-existentes associadas a um risco elevado de perturbação mental grave, tal como a Perturbação do Espectro do Autismo.
A PEA é uma condição do neurodesenvolvimento que se prolonga por toda a vida e que se caracteriza por dificuldades nas competências sócio-comunicativas e pela presença de padrões de comportamento e interesses restritos e estereotipados. Sabe-se que pessoas autistas correm um risco acrescido de desenvolver uma ou mais perturbações psiquiátricas ao longo da vida. Entre estas condições psiquiátricas concomitantes, as perturbações psicóticas são registadas em taxas variáveis, que vão de 0,6% a 9,4% em populações adultas. Além disso, a investigação demonstrou que as pessoas autistas não só correm um risco acrescido de sintomas psicóticos concomitantes, como também as pessoas com perturbações psicóticas podem apresentar níveis mais elevados de traços autistas.
Assim, apesar de a PEA e a psicose serem condições distintas, há uma hipótese emergente que sugere um continuum entre elas. Esta hipótese é apoiada por evidências de origens neurodesenvolvimentais partilhadas e características clínicas sobrepostas, particularmente relacionadas com dificuldades nas competências sociais e comunicativas. Nomeadamente, os principais sintomas da PEA, tais como contacto visual reduzido/atípico, fraca reciprocidade emocional e social, e linguagem estereotipada, podem assemelhar-se a sintomas psicóticos, incluindo retraimento social, afecto embotado e discurso desorganizado. Consequentemente, a identificação e caracterização de sintomas psicóticos em pessoas autistas continua a ser um desafio, ainda mais complicado pela evidência de que a apresentação de sintomas psicóticos nas PEA pode diferir da observada na população em geral, exibindo frequentemente uma maior ênfase nos sintomas afectivos, um início mais agudo e um curso transitório. Como resultado, a deteção e caracterização de sintomas psicóticos, especialmente durante a fase prodrómica, continua a ser um desafio significativo em pessoas autistas. Por conseguinte, embora os estudos disponíveis indiquem uma maior prevalência de sintomas psicóticos atenuados na PEA, continua a não ser claro se os sintomas prodrómicos na PEA reflectem os da população em geral.
Vânia (nome fictício), de 18 anos, vive com os pais. Desde a escola primária, sempre foi uma boa aluna e obteve notas altas, mas apresentava dificuldades em fazer amigos. Aos 11 anos, desenvolveu anorexia nervosa e começou a consultar um terapeuta. Aos 13 anos, sofreu ataques de pânico recorrentes com características atípicas (principalmente despersonalização e desrealização). Pouco depois de iniciar o tratamento com SSRI, ela apresentou um episódio hipomaníaco e foi prescrito estabilizadores de humor. Aos 17 anos, desenvolveu a crença de que era de outro mundo, para o qual desejava voltar. Ao demonstrar pensamentos suicidas e comportamentos de automutilação para se reconectar ao seu mundo, ela foi encaminhada para tratamento psiquiátrico em regime de internamento. Durante a internamento hospitalar, foi observado um padrão peculiar de comportamento e comunicação, levando a uma avaliação de autismo e a um diagnóstico formal de PEA e perturbação esquizoafetiva concomitante. Apesar de vários antipsicóticos diferentes, o pensamento delirante não apresentou melhora e foi necessário tratamento hospitalar agudo recorrente durante um período de seis meses; portanto, tendo sido internada numa instituição de saúde mental de longa duração.
O caso da Vânia, com uma apresentação e evolução diferente do Paulo, mostra ainda assim a presença de um diagnóstico de PEA com outros quadros clínicos também verificados com relativa frequência no autismo, nomeadamente de uma perturbação da conduta alimentar e episódio hipomaníaco. E com um prognóstico mais reservado. Por norma, quando verificamos um diagnóstico de PEA com um conjunto de outros quadros clínicos concomitantes e com sintomatologia difusa e intensa, é importante pensar na importância de reverter a evolução clinica e da estabilização da mesma, sob pena do agravamento da situação e de uma possível evolução para um quadro clinico mais grave.
A PEA não reconhecida pode ser erroneamente diagnosticado como uma perturbação psicótica, pois as pessoas autistas podem apresentar características psicóticas, semelhantes a sintomas negativos e positivos. A sobreposição entre os desafios de comunicação na PEA e os sintomas negativos na psicose reflecte a complexa interação entre essas duas condições, ambas tendo, em sua essência, o afastamento das relações sociais e a dificuldade em se expressar. Embora ofereça uma melhor compreensão de ambas as condições e dos factores de risco e bases genéticas comuns conhecidos, a ampla sobreposição entre o Critério A da PEA e os sintomas negativos torna necessário basear-se no Critério B da PEA (e.g., comportamentos repetitivos e interesses restritos) e nos sintomas positivos da psicose para distinguir um diagnóstico do outro. No entanto, separar os sintomas positivos semelhantes à psicose autista da psicose verdadeira ainda pode ser um desafio.
Outros exemplos observados no espectro do autismo, as pessoas autistas podem frequentemente falar consigo mesmas como uma forma de ecolalia, como uma maneira de pensar em voz alta ou antecipar uma conversa. No entanto, isso não tem nada a ver com sintomas psicóticos e não depende de alucinações ou delírios. Podem criar fantasias muito elaboradas e passar muito tempo envolvidos em cenários fantásticos, reproduzindo imagens e conversas repetidamente. As pessoas com quociente de inteligência (QI) normal a elevado geralmente têm boa compreensão da realidade, enquanto aqueles com dificuldade cognitiva podem apresentar pensamentos atípicos muito intensos, bastante semelhantes a delírios. Ou então, uma ampla gama de interesses fixos e bizarros também pode se assemelhar a delírios. Podem apresentar aumento da sensibilidade interpessoal e tornar-se desconfiados em contextos sociais. Isso pode evoluir para uma perturbação delirante, mas mais frequentemente pode assemelhar-se a um traço estável, ocasionalmente abrindo caminho para sintomas psicóticos transitórios. Muitos pessoas autistas apresentam fenómenos dissociativos, denominados “shutdowns”, geralmente causados por sobrecarga emocional ou sensorial. Durante esses episódios, a pessoa retira-se do ambiente em diferentes graus, apresentando indiferença parcial ou total aos estímulos externos, incapacidade de se comunicar e de se mover. O comprometimento do funcionamento durante um shutdown varia de leve (e.g., ser capaz de andar e falar) a grave (e.g., sentir-se separado do próprio corpo, ficar em posição fetal, etc.). Quando duram muito tempo ou causam comportamentos errantes, os shutdowns podem ser interpretados como dissociações de natureza psicótica, até devido à sua intensidade e idiossincrasia. Além disso, as pessoas autistas frequentemente apresentam hipersensibilidade sensorial (ou seja, consciência elevada e reactividade excessiva a estímulos externos, como texturas, cheiros, luz ambiente, ruídos altos, toque), que pode ser confundida com alucinações e levar a comportamentos semelhantes aos observados em pacientes psicóticos (e.g., angústia e evitação de locais barulhentos ou certas roupas, evitar ser tocado, cobrir os ouvidos, aparentar estar a ouvir outra coisa).
O espectro do autismo faz pensar nas inúmeras vidas que um gato têm. Além de ser um quadro clinico já de si complexo e heterogéneo. A perturbação do espectro do autismo apresenta um conjunto de outros diagnósticos psiquiátricos que podem surgir em concomitância com este e aumentar a complexidade na sua detecção, diagnósticos errados ou pouco compreensivos, originando uma intervenção menos adequada. A avaliação na clinica para a atribuição de um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo além de aprofundada. Deverá ser continuada ao longo do tempo, até para poder ajudar a compreender a evolução destes quadro clínicos que se podem complexificar ao longo do tempo.

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