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Tenho uma casa na minha cabeça

A casa é, para qualquer ser humano, muito mais do que um espaço físico. É metáfora e memória, a materialização de uma ideia de pertença, segurança e continuidade. Desde cedo aprendemos a olhar para ela não apenas como um abrigo contra o frio e a intempérie, mas como o lugar onde o íntimo se revela e se constrói. A infância deixa-nos impregnados de imagens de quartos, cheiros de cozinha, texturas de paredes e sons que se tornam familiares. Esse repertório sensorial e emocional alimenta, ao longo da vida, a convicção de que o lar é também um sonho, uma promessa que desejamos concretizar para nós mesmos.


Contudo, o sonho da casa nem sempre se ergue em ordem. Há momentos em que começamos pelo telhado, aspirando ao conforto e ao ideal, sem fundações sólidas que sustentem tal estrutura. Mais tarde, pela exigência da realidade, reconhecemos a necessidade de pilares firmes que fixem a habitação ao chão. Assim se cumpre o movimento da vida: erguer primeiro o que se deseja, para depois ajustar o sonho às condições que permitem habitá-lo.


Para as pessoas autistas, este percurso adquire contornos particulares. A transição para a vida adulta traz consigo o desejo legítimo de autonomia e independência. O sonho da casa, neste contexto, adquire um peso acrescido, pois liga-se de forma íntima ao anseio de autodeterminação. No entanto, esse desejo encontra-se frequentemente em choque com limites estruturais que a sociedade impõe. O mercado de trabalho, que poderia constituir o alicerce para esse sonho, levanta barreiras concretas: ambientes ruidosos e imprevisíveis, ausência de adaptações sensoriais, persistência de estigmas e rigidez organizacional. Sem acesso a um emprego estável, a possibilidade de transformar a casa em realidade torna-se frágil, quase suspensa.


É precisamente neste ponto que emergem os modelos de apoio à habitação como resposta social e política. Em diferentes países, multiplicam-se soluções que vão desde residências coletivas a apartamentos com acompanhamento intermitente, passando por programas de coabitação inclusiva ou habitação autónoma com suporte comunitário. O princípio central deve ser sempre o respeito pela autodeterminação, reconhecendo a pessoa autista não como destinatária passiva de cuidados, mas como sujeito de direitos e escolhas. Uma habitação que respeite o modo de ser autista não é apenas espaço físico, é também arquitetura de dignidade.


Exemplos como o modelo Skjoldhøj Kollegiet na Dinamarca, que promove apartamentos autónomos integrados numa comunidade maior, ou os programas de Supported Living no Reino Unido, ilustram esta diversidade de respostas. No Canadá, algumas províncias têm desenvolvido iniciativas de “co-housing inclusivo”, onde pessoas autistas partilham espaços comunitários, preservando simultaneamente a sua independência. Em Portugal, começam a surgir projetos-piloto de apartamentos autónomos com apoio intermitente, ainda em fase inicial, mas que revelam a preocupação crescente com este tema.


Modelos eficazes de apoio à habitação assentam em pilares fundamentais. A flexibilidade deve permitir que cada pessoa escolha entre diferentes formas de habitar, de acordo com o seu grau de autonomia e com a sua necessidade de intimidade. O apoio comunitário, presente de forma contínua mas não intrusiva, assegura acompanhamento quando necessário, sem comprometer a independência. A integração social revela-se igualmente indispensável, pois a casa não pode ser um lugar de isolamento, mas antes uma ponte para o bairro, a cidade e a vida cultural. A tudo isto deve somar-se a sustentabilidade económica, ancorada em políticas públicas que promovam o acesso a habitação a custos comportáveis, sobretudo para quem enfrenta barreiras acrescidas no mundo laboral.


A experiência dinamarquesa mostra como a flexibilidade pode ser garantida, oferecendo diferentes modalidades de habitação para diferentes níveis de autonomia. No Reino Unido, os serviços de apoio comunitário desenvolvem práticas que vão desde visitas semanais a acompanhamento diário, consoante as necessidades. Já em Portugal, iniciativas como o Projeto-piloto de Vida Independente começam a testar a possibilidade de combinar habitação autónoma com redes de apoio comunitário. Em todos estes casos, a questão da sustentabilidade económica permanece central, obrigando os governos a garantir subsídios e apoios que viabilizem a equidade no acesso.


A questão da habitação para pessoas autistas não se reduz, portanto, a um tema de infraestrutura, mas é profundamente existencial. É dar corpo a um sonho que, sem alicerces, permanece apenas no telhado suspenso no ar. Quando verdadeiramente alcançado, o lar transforma-se em chão seguro, permitindo a cada pessoa ser, existir e crescer.


Refletir sobre estes modelos é refletir sobre nós próprios, sobre a forma como, enquanto sociedade, escolhemos lidar com a diferença. O direito à casa é também o direito ao sonho de habitar o mundo de forma plena. Para as pessoas autistas, esse sonho só se realiza quando os pilares da inclusão, do apoio e da dignidade estão firmemente cravados no solo das nossas políticas e práticas sociais.

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