O povo sempre disse que os olhos são uma janela para a alma. Em criança ouvia muito frases como, "Tens os olhos da tua mãe!", o que no principio me deixava curioso de como era possível, mas rapidamente percebi. Outras vezes diziam, "Os teus olhos estão a mentir, diz-me a verdade!". E ficava sem perceber como poderiam ter adivinhado que tinha feito um desenho na parede se eu tinha escondido com o sofá? Pedi desculpa e para me explicarem como tinham conseguido adivinhar. Mais tarde disseram-me, "Os teus olhos disseram-me tudo, já compreendi!". E na verdade a pessoa havia compreendido. Naquela altura já percebia um pouco mais da importância do olhos e do olhar. E quase depois disso fui para Psicologia e passei a tentar ver o Mundo das pessoas através dos seus olhos, do seu olhar. Independentemente das generalizações ou dos provérbios e dizeres populares, o certo é que desde sempre o olhar despertou curiosidade em muitos como uma possibilidade de conhecer melhor e deduzir acerca do caracter da pessoa. E ao longo destes anos a ciência foi-me ensinando como poderíamos materializar um dizer popular numa aproximação da realidade - Como poderíamos compreender melhor o caracter da pessoa autista através do seu olhar!
"Se podes olhar, vê.Se podes ver, repara."
José Saramago, in Ensaio sobre a cegueira
A vida está cheia de dizeres populares, tais como, "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és!". Uma frase que muitos de nós fomos ouvindo e aprendendo a custo o seu significado. Mas por detrás do significado da frase está esta ideia subjacente e presente desde sempre em nós - saber quem é o outro. Provavelmente um desejo ancestral da Humanidade. Seja por questões de sobrevivência, em que saber quem é o outro nos permite perceber se há risco envolvido ou não. Mas também de continuidade da própria espécie humana, em que sabermos acerca das qualidades da outra pessoa nos permite escolher melhor um parceiro/a para acasalar. Saber quem é o outro, seja através da relação estabelecida pelo diálogo, mas também da observação directa e indirecta, leitura de testemunhos ou obras literárias, adivinhação e outras obras transcendentais, mas também através da ciência, tem sido uma constante ao longo da história da humanidade.
Os olhos, a visão e o olhar desempenham um papel fundamental na localização da consciência humana para além do local de controlo cartesiano. Apesar de termos outros órgãos sensoriais igualmente importantes, como o olfacto, audição, tacto e paladar. A visão ocupa uma percentagem significativa no processamento neuronal e na área cerebral ocupada para este processamento. Estima-se que cerca de 30% do nosso cérebro seja usado para processar estímulos visuais. Facto que parece demonstrar a importância da visão ao longo do desenvolvimento da espécie humana. Se pensarmos que ao longo do desenvolvimento nem sempre tivemos uma postura erecta e que já nos deslocamos em grande parte a olhar em direcção ao chão. O facto de termos passado a assumir uma posição bípede foi um grande desenvolvimento, nomeadamente para o processamento visual. Passamos a dispor de um conjunto maior de estímulos visuais ao nosso alcance, mas também a ter de decidir quais é que constituíam alguma ameaça ou não. E ainda hoje assim o é. Veja-se por exemplo quando nos deslocamos numa rua e nos desviamos para outro lugar se verificamos que nos vamos cruzar com alguém que não desejamos ver ou que pode constituir algum tipo de ameaça.
Ao longo de quase vinte anos de prática clinica penso no número infinito de olhos, olhares e da cosmovisão do Mundo de todas as pessoas que tenho acompanhado. Nos últimos anos tenho acompanhado quase exclusivamente pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). E também aqui há muito que se diz sobre o olhos e o olhar. Desde logo nos próprios critérios de diagnóstico em que é referido o deficit no estabelecimento de contacto ocular para regular a interacção social. E que muitas pessoas referem ser uma característica central no espectro do autismo, dizendo frases como, "Ele não olha directamente para as pessoas, parece ser autista!". Ou outras situações em que as pessoas referem que sentem que quando uma pessoa autista está a olhar para si parece que o próprio olhar é ausente de expressão. Como algumas pessoas referem "Senti-me atravessada pelo seu olhar!". O que quer significar é que o olhar da pessoa autista como não apresentava movimento dava a perceber que não tinha expressividade. O que no fundo remete para a questão da regulação da interacção social. Ou seja, poder movimentar os olhos para seguir o meu interlocutor no seu discurso, ou os seus movimentos, é indicador de ser um olhar que está a regular a interacção social. Ou seja, eu estou a seguir com atenção o que dizes e a compreender. Na verdade estou a reconhecer a outra pessoa.
Esta questão de poder estar a reconhecer a outra pessoa, principalmente na interacção consigo parece importante. Isto porque muitos pais e principalmente as mães referem ter esta sensação com os seus filhos desde pequenos e que vêm a descobrir mais tarde que têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Ou seja, as mães referem que quando estão a amamentar os seus filhos eles não estão a olhar para elas quando o deviam fazer. E esta angustia é muito traduzida na sensação que vão tendo ao longo do desenvolvimento na interacção com o seu filho - "Por vezes sinto que o meu filho parece não reconhecer a minha pessoa. Está a ver-me mas é como se não o estivessem!", concluem. Não é por acaso que o investigador Amo Klin do Marcus Autism Centre nos EUA têm usado e desenvolvido a metodologia de Eye-Tracking (registo do movimento ocular) em crianças pequenas logo a partir dos 6 meses de idade. E que tem descoberto que o padrão dos movimentos oculares das crianças que se vem a confirmar mais tarde que têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e os que não o têm é diferente. E inclusive este investigador e a sua equipa tem advogado a utilização da metodologia de Eye-Tracking enquanto ferramenta para realizar um despiste o mais precoce horrível. Até porque os resultados apontam que estes dados dos movimentos oculares parece funcionar como um marcador do autismo.
Mas não é apenas nestas idades mais precoces que o olhar tem sido visto como importante e analisado. Se em idades precoces não é possível obter da pessoa uma compreensão daquilo que elas estão a pensar e sentir senão pela nossa própria intuição e interpretações de alguns comportamentos e sons emitidos. Ao longo do desenvolvimento vai sendo possível obter da parte da criança, adolescente e adulto com Perturbação do Espectro do Autismo um conjunto de observações verbais que traduzem o seu pensamento e sentir acerca das coisas. E se nos disponibilizarmos para os escutar poderemos aproximar um pouco mais acerca da sua realidade vivida. Ainda assim não deixa de ser uma aproximação. Mas é o principio para perceber que certos pré e preconceitos que temos acerca do funcionamento na pessoa autista caem por terra e não fazem sentido. E muitos deles passam pelo comportamento do olhar. E a metodologia de Eye-tracking tem sido usada como uma ferramenta para nos ajudar a compreender para onde é que as pessoas autistas olham quando têm determinado conjunto de estímulos para seleccionar. Por exemplo, muitas vezes as pessoas com autismo referem ter uma maior dificuldade quando no meio ambiente envolvente há muitas coisas, sejam pessoas ou outros objectos.
E quando nós dizemos que as pessoas autistas não conseguem ou não querem olhar para nós quando falamos consigo. O que as pessoas autistas nos dizem é que num ambiente carregado de estímulos, visuais e não só, o ambiente torna-se na maior parte das vezes agressivo para o próprio. As luzes são sentidas como uma grande agressão e sentem vontade de fechar os olhos e sair dali o mais rapidamente possível. Mas também as pessoas a circundarem à sua volta acaba por causar um grande constrangimento visual, muitas vezes descritos como uma visão turva ou nublada. Semelhante ao que muitos sentiram no meio da hora de trânsito de manhã ou no final do dia. E quanto ao olhar para as pessoas ou mais especificamente para a cara das pessoas. As pessoas autistas referem que muitas vezes o que acontece é que querem tomar atenção ao que o outro está a dizer mas muitas vezes a cara das pessoas está a enviar demasiada informação e isso também causa constrangimento perceptivo. E como tal optam por não olhar para a pessoa para que consigam ter uma recepção em condição da informação que a pessoa está a enviar-lhe.
Mas como podemos saber que determinada acção ou conjunto de acções e comportamentos poderá ser designativo disto ou aquilo? Por exemplo, se alguém socializar frequentemente seria chamado de "extrovertido", mas poderiamos também deduzimos um traço comportamental de extroversão de como alguém olha? Os comportamentos são características principais dos traços, e a personalidade manifesta-se em diferentes níveis do comportamento, e olhar é um comportamento humano essencial. E como tal podemos estuda-lo através do seu registo em determinadas condições e com desenhos de investigação adequados.
O estudo do comportamento do olhar há muito tempo que é utilizado para investigar como os estímulos são processados. A premissa por detrás é, quando uma pessoa olha directamente para um objeto, a sua imagem cai na fóvea, na parte da retina especializada para o processamento visual detalhado. Os olhos portanto, precisam de se mover para inspecionar toda uma cena visual e os seus detalhes. Isso é útil quando combinado com um teste de desempenho cognitivo, como um teste da Teoria da Mente, ou reconhecimento de emoções, porque fornece informações além das informações gerais de uma pessoa na pontuação desse mesmo teste. Por exemplo, Informações sobre quais as partes do estímulo de teste, a pessoa estava a olhar e fazer diferentes fixações do seu olhar e isso pode fornecer insights sobre as estratégias que ele ou ela poderia estar a usar para concluir o teste. Assim, o Eye-tracking é uma metodologia de rastreamento ocular que oferece uma medida direta da atenção social visual.
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