top of page

Parem!!

As pessoas não estão habituadas a ver pessoas autistas a rir! disse Samuel (nome fícticio). Tinham acabado de perguntar-lhe sobre a sua experiência ao longo da escolaridade obrigatória. Lembro-me de tudo! continua. Eu sei que é uma capacidade minha o lembrar-me de tudo, e que tem a ver com o facto de eu ser uma pessoa autista, mas não deixa de fazer parte de quem eu sou! acrescenta. Aprendi muito, principalmente coisas fora do curriculo escolar. Até porque esse eu já o sabia muito bem, porque o estudava intensamente durante o período das férias do verão. E como tal havia muita coisa que os professores me podiam ensinar! refere. Mas aquilo que aprendi mais foi sobre o comportamento humano, o meu e de todos os outros, colegas e professores! diz.


Havia vários temas em debate no grupo e entretanto alguém pergunta sobre o bullying na escola. Fez-se silêncio nas vozes, mas os corpos pareciam mais irrequietos. Samuel levanta o braço ainda que com alguma dificuldade. As pessoas ficaram à espera que ele começasse a falar. Ao fim de algum tempo de silêncio alguém lá se atreveu e perguntou-lhe se ele não ia dizer nada. Não pensei que fosse para falar! diz. Mas levantaste o braço! disseram-lhe em unissono. Falaram em bullying e eu levantei o meu braço para o mostrar! refere. O braço direito do Samuel para aqueles que estão a ler este texto e não o estão a ver está cravado de cicatrizes. Algumas das cicatrizes foram consequência de colegas que me bateram ou perseguiram e eu acabei por cair! diz. Outras foram feitas quando eu próprio passei a bater em outros colegas! Esta últimas e que estão mais visíveis foram feitas por mim próprio! continua.


Segunda-feira dia será o dia Mundial de combate ao Bullying! refere Samuel. Todos nós vamos ler ou ver várias noticias na televisão e internet. A grande parte de nós aqui presentes nesta sala sabemos bem o que é o bullying e o que ele tem e vai continuar a fazer na nossa vida! Apesar de não ser uma características comportamental do diagnóstico de autismo, é uma constante na vida das pessoas autistas! remata. Até de professores já fui vitima de algum tipo de agressividade verbal e fisica! Já disseram que eu achava que sabia tudo ou mais do que os outros! Já me agarraram no braço ao ponto de fazer uma nódoa negra e depois disseram aos meus pais que tinham de me ensinar a controlar para que eles não tivessem que me agarrar pelo braço para eu não fazer aquilo que queria! comenta. E neste momento nem me apetece falar sobre as infinitésimas situações em que fui batido, cuspido, gozado, humilhado, enganado ou roubado por trinta e sete colegas durante o 1º e o 12º ano! Sim, contei-os todos, foram trinta e sete! Sei o nome deles todos! E lembro-me de tudo o que aconteceu, antes, durante e depois! refere.


Mas não quero falar disso! acrescenta. Não acho que adianta de nada! Ao longo destes meus 21 anos verifiquei que muito pouco do que tem sido feito mudou alguma coisa no bullying! De ano para ano aumenta, e quando diminui é porque o cyberbullying tem aumentado! Por isso parem! Parem! gritou Samuel. Temos de fazer as coisas de forma diferente! disse, tendo ficado depois em silêncio. As pessoas na sala ficaram todas a olhar para ele. Samuel continua imovel e com uma cara neutra, quase inexpressiva, habitual seu. Demorou quase cinco minutos aquele silêncio, até que o murmurinho se começou novamente a notar e os corpos mais irrequietos. Houve quem se começasse a levantar com ideia de sair. Alguns começaram a conversar com a pessoa do lado! Samuel começou a sorrir! Depois a sorrir mais alto! Soltou uma gargalhada! Ate aqueles que se preparavam para sair ficaram parados. Ninguém parecia estar a compreender. Alguém ao lado do Samuel perguntou-lhe porque estava a rir. Ainda demorou uns dois minutos até o Samuel responder, até porque estava a rir com vontade.


As pessoas não estão habituadas a ver pessoas autistas a rir! disse. As pessoas continuaram imoveis e silenciosas. Precisamos todos de fazer coisas diferentes. Precisamos de não nos irmos embora dos sitios, seja aqui ou de qualquer outro local sem dizer aquilo que pensamos e sentimos, seja negativo, positivo ou neutro. Precisamos de falar aquilo que está a acontecer. Achamos que as outras pessoas que nos estão a fazer algum tipo de mal nos vão continuar a fazer mal se dissermos ou fizermos alguma coisa, certo? Mas se pensarem é precisamenteo o facto de ficarmos calados que tem levado a que as coisas continuem a acontecer. As pessoas estão à espera que por sermos pessoas autistas somos mais frágeis. E como somos mais frágeis não iremos dizer ou fazer nada. Podemos e devemos fazer algo, denunciar a situação. Se não queremos dizer à outra pessoa, seja ele colega ou adulto, para parar e que não pode dizer ou fazer aquilo, devemos denunciar. Dizer em casa, mesmo que em casa possam não dar muita atenção ao que estamos a dizer. Dizer aos professores, mesmo que estes possam sentir-se impotentes e não nos conseguirem ajudar. E mesmo quando às vezes os adultos à nossa volta parecem criar mais problemas do que soluções, devemos denunciar. Podemos ir à PSP ou então ligar para as linhas de apoio e denunciar a situação. Denunciar vai fazer com que a situação possa continuar a ser resolvida e finalmente parada. As pessoas não estão à espera de ver uma pessoa autista a rir! As pessoas não estão à espera de ver uma epssoa autista a procurar resolver uma situação de bullying contra si! Precisamos de fazer coisas diferentes, mesmo quando isso significa e representa uma enorme dificuldade para nós! refere. Pensem que a maioria das pessoas envolvidas no bullying são espectadores. Peçam ajuda a essas pessoas! Se não conseguem falar com eles enviem uma mensagem ou escrevam um bilhete. Digam! Denunciem! E se tiverem amigos ou colegas com quem falam um pouco mais contem o que aconteceu e peçam ajuda! Sim, as pessoas ajudam-se umas às outras mesmo quando antes disso estiveram enquanto espectadoras e não fizeram nada para parar a situação. As pessoas são estranhas! Todos nós somos estranhos de uma forma ou de outra. Não são apenas as pessoas autistas que são diferentes! As pessoas não autistas também são diferentes! Somos todos diferentes! E muitas vezes fazemos coisas estranhas ou inesperadas!


Lembre-se, as pessoas não estão habituadas a ver uma pessoa autista a sorrir! conclui.


E sabem, continuou Samuel, não é apenas o bullying físico ou verbal que nos marca. Há também o bullying silencioso, aquele que se esconde nos olhares, nos risos abafados, nos comentários murmurados atrás de portas fechadas. Esse tipo de violência é invisível, mas não menos doloroso. Fica guardado na memória, nos gestos, na postura, na maneira como aprendemos a olhar para o mundo e para nós mesmos.


Aprendi que a maior força não está em nos calarmos ou nos adaptarmos para agradar, mas em compreender quem somos e o que sentimos. Essa compreensão, essa consciência, dá-nos poder. Poder para reagir, para criar limites, para proteger o nosso espaço e os nossos sentimentos. Para muitos, esta capacidade é estranha, desconcertante. Para nós, pessoas autistas, é um farol.


E é por isso que, concluiu Samuel com mais calma, precisamos de criar espaços seguros. Espaços onde a diferença não seja motivo de riso ou de agressão, mas de curiosidade e de respeito. Onde a empatia não seja ensinada como obrigação, mas vivida como prática quotidiana. Onde cada denúncia seja ouvida e não ignorada. Onde cada ato de coragem, por menor que pareça, seja reconhecido.


Porque, acrescentou com firmeza, quando conseguimos mudar uma pequena atitude, quando conseguimos que uma pessoa pare de ferir outra, quando conseguimos que alguém ouça o nosso “basta!”, estamos a quebrar um ciclo que, de outra forma, se perpetua. E isso, mesmo que seja apenas por um instante, é libertador. É esperança. É humanidade.


E então, terminou Samuel, sorrindo de forma mais serena, não tenham medo de mostrar a vossa força através do vosso sorriso, da vossa voz, da vossa presença. O bullying só existe enquanto nos silenciamos. E nós, pessoas autistas ou não, temos o direito e a responsabilidade de nunca nos calarmos.


Não precisamos apenas de falar sobre o bullying, precisamos de agir. Existem formas de nos protegermos e também de ajudar os outros. Por exemplo, quando virem alguém a ser vítima, não fiquem só a olhar. Aproximem-se, perguntem se está tudo bem, digam que podem ajudar. Mesmo pequenos gestos podem fazer uma diferença enorme.


Se forem vocês a ser alvo, lembrem-se: podem sempre falar com alguém de confiança. Pode ser um familiar, um amigo, um professor, um orientador, ou até uma linha de apoio. Não precisam de enfrentar tudo sozinhos. Esconder a dor só a aumenta. E denunciar não é fraqueza, é coragem.


Samuel respirou fundo e continuou, com a voz mais firme. Criem planos. Se alguém vos magoar, pensem em como reagir sem se colocar em perigo. Aprendam a usar palavras para defender os vossos limites. Se não se sentirem seguros, escrevam um bilhete, enviem uma mensagem, deixem uma prova do que aconteceu. A documentação ajuda a que a situação não seja ignorada.


Outra coisa muito importante, disse Samuel, é envolver os espectadores. Muitas vezes, quem presencia o bullying acha que não tem nada a ver com isso. Mas cada um de nós tem responsabilidade. Se virem algo, ajudem, mesmo que seja apenas a ouvir e apoiar a vítima. Os espectadores podem mudar a dinâmica do bullying, transformar o silêncio em ação.


E, concluiu Samuel, não se esqueçam de cuidar de vocês. O bullying deixa marcas, e precisamos de tempo para cicatrizar, para nos reconstruir. Procurem apoio psicológico, atividades que vos tragam prazer e momentos de segurança. Não deixem que a experiência de violência vos defina.


Porque, no final, todos nós podemos fazer coisas diferentes. Todos nós podemos criar espaços de respeito, empatia e inclusão. O bullying só existe enquanto houver silêncio e medo. Quando abrimos a boca, quando nos mexemos, quando rimos apesar de tudo, começamos a quebrar o ciclo.


E lembrem-se, reforçou, ainda sorrindo: não estão sozinhos. Cada pessoa que decide agir, que denuncia, que protege, que ouve, torna o mundo um lugar mais seguro. E esse é um poder que todos nós temos, mesmo quando parece impossível.


Samuel respirou fundo e começou a contar uma pequena história. Lembro-me de um colega que via todos os outros a rir de um rapaz mais novo. Ele estava sozinho, encostado à parede, a tentar proteger os cadernos do vento. Eu podia ter ficado calado, mas não fiquei. Aproximei-me, disse-lhe o meu nome e perguntei se queria companhia. Ele assentiu. E só por isso, naquele instante, o riso deixou de ser tão forte. Ele não estava sozinho.


Uma pessoa no grupo perguntou hesitante: Mas e se eles se virarem contra nós? Samuel olhou à volta, olhos sérios. Eles podem. E pode doer. Mas não agir é pior. Comecem com pequenos passos. Podem apenas segurar o braço da pessoa que sofre, ou sussurrar palavras de apoio. Podem escrever uma mensagem para alguém que confia em vocês, contar o que aconteceu. Mesmo ações silenciosas são poderosas.


Outro participante comentou: E se um professor não fizer nada? Samuel sorriu levemente, quase impercetível. Então procurem outro adulto. Não desistam. Podem ir à direção, ao orientador, à família. Podem ligar para linhas de apoio. O importante é que alguém saiba. A ignorância não vai proteger ninguém.


E continuou, desta vez descrevendo uma cena prática: Havia uma vez uma colega que estava a ser empurrada constantemente. Eu estava à distância, a ver. Vi uma amiga minha a aproximar-se dela, a segurar-lhe a mochila e a perguntar: ‘Queres que eu fique contigo até a aula começar?’ E ficaram juntas. Sem gritar, sem confrontos diretos, apenas a presença delas mudou tudo naquele momento. O agressor parou. Às vezes, a força está em estar presente, em não deixar a vítima sozinha.


Samuel respirou fundo e concluiu, com a voz mais firme: Sejam espectadores ativos. Sejam aqueles que interferem de forma segura, que protegem, que denunciam. Criem redes. Amigos, colegas, familiares, professores, linhas de apoio. Façam um plano. Pensem: ‘Se isto acontecer comigo ou com alguém, a quem posso recorrer?’ Cada plano é uma arma contra o bullying.


E, com um sorriso que iluminou a sala, acrescentou: Nunca subestimem o poder do riso, da palavra, da presença. O bullying só existe enquanto houver medo e silêncio. Quando abrimos a boca, quando agimos, quando apoiamos, começamos a quebrar o ciclo. E, lembrem-se, não precisam de estar sozinhos. Todos podemos fazer coisas diferentes. Todos podemos tornar o mundo mais seguro, um gesto de cada vez.


ree

 
 
 

Comentários


Informação útil:

  • Facebook Social Icon
  • YouTube Social  Icon
  • Instagram Social Icon
  • Twitter Social Icon

Cadastre-se

©2018 by Autismo no Adulto. Proudly created with Wix.com

bottom of page