Não vou fazer um diagnóstico post mortem ao Michael Jackson nem defender que muitas das suas características ao longo da vida se encontram no Espectro do Autismo. A música Bad foi lançada a 7 de setembro de 1987 e fez recentemente 32 anos. Já vai algum tempo e ainda há quem a oiça e associe aos "bad boys" dos gangs. É um pouco assim que aqueles com mais de 50 anos se sentem quando recebem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) ao fim deste tempo todo.
Ao longo destes últimos dois anos recebo cada vez mais pessoas acima dos 40-50 anos em consulta com o pedido de avaliação formalizado pelo próprio/a a solicitar um despiste de Perturbação do Espectro do Autismo. Algo que em outras determinadas circunstâncias seria estranho de pensar. Uma condição que ocorre ao longo do ciclo de vida e possível de diagnosticar ao 2 anos de idade como é que chega ao 50 sem ser detectada, certo? Mas a verdade é que as circunstâncias são outras.
O Zé Carlos (nome fictício) na primeira consulta refere frequentemente que ao longo destes anos todos sempre foi visto como alguém marginal ao normativo da sociedade. Como alguém rude, arrogante, mal educado, etc. Os adjectivos pareciam não parar e o seu sofrimento também não. A Clara (nome fictício) demorou a começar a falar e com alguma dificuldade disse que se sentia cansada, desesperada e com pavor de voltar a ouvir da minha pessoa que ela teria uma depressão. Insistindo que caso isso acontecesse que sairia da consulta. Ambos são adultos acima dos 40 anos de idade que procuraram a consulta de psicologia no Núcleo de Perturbação do Espectro do Autismo no PIN. Ouviram falar e leram alguns textos sobre a Perturbação do Espectro do Autismo no adulto e da possibilidade de fazer o diagnóstico nesta idade e ganharam coragem para procurar mais uma vez saber o que verdadeiramente se passa consigo.
Cada vez mais adultos com mais de 50 anos estão a receber um diagnóstico de PEA. Cresceram numa época em que o autismo era pouco reconhecido. Se pensarmos, a história do autismo tem cerca de 80 anos e apenas nos últimos 10-15 anos tem havido uma compreensão mais holistica e ao longo do ciclo de vida. Esses adultos viviam inconscientemente com a condição e enfrentavam reajustes diários. A investigação em adultos e idosos não diagnosticados é essencial, pois muitas pessoas que acabam por ter um diagnóstico de PEA, já estão a ser acompanhados por problemas sociais, ansiedade e perturbação do humor sem que sua condição central (Perturbação do Espectro do Autismo) seja reconhecida. O isolamento e más perspectivas de emprego, e os serviços de saúde e educação para adultos com PEA permanecem subdesenvolvidos, com 62% dos adultos com PEA a reportar falta de apoio, o cenário é gritante.
Dado o contexto histórico da doença e o progresso alcançado na etiologia e no desenvolvimento de técnicas de diagnóstico, é provável que haja muitos adultos a receber um diagnóstico PEA após os 50 anos de idade, e é crucial que os profissionais de saúde, da área social e clínicos detectem os sinais de PEA em adultos mais velhos. Quando em crianças, estes adultos estavam conscientes de suas diferenças, mas não conseguiram reflectir sobre por que seu comportamento os isolava. Os sintomas característicos da PEA estavam prontamente presentes, incluindo isolamento social, comportamentos repetitivos e ritualizados.
"Eu nunca tive amigos; Eu nunca fiz amigos." Tive dificuldade com alterações nas rotinas ou situações inesperadas. Mesmo que as mudanças fossem pequenas, achei difícil lidar com elas." Diz Clara (nome fictício). "O problema social era um problema, eu não podia fazer festas de aniversário e não conseguia me comportar com outras crianças por mais de 10 minutos." Diz Zé Carlos (nome fictício). "Eu estava completamente isolado e sempre em apuros, bastante odiado por muitas pessoas ... tentei ser amigo das pessoas e fui rejeitado. Não sei porquê". Continua Zé Carlos. "Minha mãe disse que quando eu estava na primária, eu não conseguia lidar com o trabalho na sala de aula com outras crianças, e eu costumava trabalhar bastante na biblioteca." finaliza.
Estudos científicos reportam que indivíduos com PEA geralmente procuram um diagnóstico devido a interações sociais e preocupações de relacionamento. Um ponto constante expresso é o sentimento de sempre ter sido diferente dos outros. A incapacidade de "encaixar" foi suportada até que se tornasse insustentável. Eu sempre me senti assim alienígena ... Sinto que sou um tipo diferente de humano para humanos não autistas. Eu simplesmente não me encaixei e me senti péssima. Sempre soube que era diferente, sempre soube que não me encaixava, mas não sabia o que era, o rótulo que o acompanhava. Estas e outras frases são constantes em muitos destes adultos. O conhecimento de ser diferente traz consigo uma procura de explicações. Antes de receber um diagnóstico, alguns deles expressam a sua diferença em termos de negativo. Essa rotulagem negativa surgiu de uma avaliação lógica da situação: "Se tantas pessoas me desprezam, devo ser uma pessoa má", referem. Não é de estranhar que muitos passam a desenvolver uma atitude mais paranóide e desconfiada. Em grande parte assente e explicada por todo um conjunto de experiências vividas de forma negativa.
As reacções iniciais ao receber de um diagnóstico são uma combinação de emoções diferentes. Inicialmente sentem que o diagnóstico justifica os seus sentimentos de serem diferentes e fornece um motivo para experiências passadas. O diagnóstico permitiu que eles abandonassem lutas impossíveis e reformulassem a sua auto-identidade. Realmente foi como um tipo de momento eureka ... foi um alívio ... e não foi minha culpa, e essa foi uma das maiores coisas, que eu percebi que não era minha culpa. É o alívio de saber o que está errado. Um alívio, porque há anos e anos tudo se reduz à ansiedade e à depressão. Tudo nos últimos 30 anos fazia sentido, tudo se encaixava e fazia sentido. Então foi uma verdadeira (suspiros), quero dizer 'revelação' não é mesmo a palavra, na verdade, foi (suspiros) que eu estava apenas atordoada, realmente, ao pensar que eu poderia ter passado pela vida potencialmente tendo Asperger e nunca tendo percebido. São momentos vividos por quase todos de uma forma bastante intensa. O diagnóstico permitiu que colocassem seu comportamento na perspectiva de uma estrutura de funcionamento típico de uma PEA. Em alguns casos, o diagnóstico provoca descobertas e novas explorações do eu, à medida que o indivíduo começa a reconhecer e reparar certos deficits percebidos. Se para uns, o diagnóstico permitiu entender melhor sua reacção a estímulos externos e, embora a compreensão de uma aversão à luz do sol possa parecer óbvia e trivial, isso era algo que muitos percebem ser importante e falam por algum tempo. Muito daquilo que acontece na sua vida passa a ter uma explicação, um sentido.
Comments