Lia-se ontem no Expresso, "50 mil Portugueses têm autismo". Se houve quem se perguntasse com espanto, "São assim tantos, não fazia a mínima ideia!?". Outros perguntaram rapidamente com certeza do que diziam, "50 mil? Parecem-me poucos!". E também houve tempo para ler, "Isto agora é tudo autismo. Qualquer coisa e a pessoa é autista. Só séries com autismo, isto deve estar na moda.". Para além dos importantes testemunhos e contributos da Astrid Vicent Moura, Nuno Lobo Antunes e Piedade Libano Monteiro. A coragem da Sara Rocha, autista de 29 anos em dar a cara e a sua vivência no Espectro do Autismo foi fundamental. Ainda são poucas aquelas pessoas que optam por o fazer. E os adultos, principalmente aqueles que descobriram tardiamente o seu diagnóstico de autismo, parecem ser aqueles que mais receio têm. E em Portugal ainda mais. Por isso, estas e outras noticias que vão colocando na agenda o tópico do autismo, para além de urgentes, servem o propósito de desconstruir mitos, informação errada e sensibilizar para aquilo que é a variabilidade de situações vividas no Espectro do Autismo, no masculino mas também no feminino. E como a Sara Rocha diz, "Sou Autista, É um alivio.". Mas afinal porquê?
Pode ler-se no Guia Completo para a Síndrome de Asperger, do Tony Attwood, "Eu usualmente digo à criança - Parabéns, tens Síndrome de Asperger, e explico-lhe que isso significa que ele ou ela não é louco, mau ou deficiente, mas que tem uma forma diferente de pensar.". É compreensível que nem todos pensem desta forma e sintam que o diagnóstico de Síndrome de Asperger e hoje designado de Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1) não é nenhum alivio. Mas muito pelo contrário é algo indesejado ou até mesmo amaldiçoado. Não me cabe julgar se está certo ou errado. Até porque a forma como cada um recebe o seu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo ou dos seus filhos precisa de ser enquadrado.
Imaginem a pessoa que descobriu desde cedo o seu diagnóstico, por exemplo aos 5 anos de idade - Perturbação do Espectro do Autismo (nível 2). Em que além das características habituais encontradas no Espectro do Autismo, também tem associado um déficit cognitivo e comprometimento da linguagem. E continuem a imaginar que esta pessoa foi descobrindo ao longo da sua vida, até porque hoje tem 34 anos, que a grande maioria das pessoas não a compreendeu ou aceitou. Fosse na escola, e dentro da escola nos múltiplos intervalos em que ficava quase sempre no mesmo lugar sem que ninguém se aproximasse. Quando certo dia perguntaram a esta pessoa o que ela achava do autismo, ela respondeu prontamente, "O que é que há para achar do autismo?". Talvez a pessoa não tenha compreendido a pergunta ou o alcance da mesma. Ou também noa tenha visto o sentido daquela questão. Talvez em outras condições ela pudesse ter respondido, "Perguntem aos outros o que acham do autismo, porque para mim é parte integrante de mim. Os outros é que parecem ter maior dificuldade com isso!".
E agora imaginem a pessoa que descobriu tardiamente o seu diagnóstico, por exemplo aos 39 anos de idade - Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1). Em que além das características habituais encontradas no Espectro do Autismo, também tem associado uma Perturbação Obsessivo-Compulsiva. E continuem a imaginar que esta pessoa foi sentindo que ao longo da sua vida era alguém mal educado, arrogante, impulsivo, teimoso, preguiçoso, anti-social, insensível, desumano, etc. Porque estes e outros adjectivos foram sendo aqueles que a pessoa foi ouvindo da família, os poucos colegas com quem interagiu, alguns professores que pareciam não ter paciência para si, etc. Talvez possamos pensar que esta mesma pessoa quando descobriu o seu diagnóstico terá ficado aliviado por finalmente saber o que sempre se passou consigo.
E agora imaginem que tal como na noticia do Expresso existem cerca de 50 mil Portugueses nesta situação, sejam crianças, adolescentes e adultos, do sexo masculino e feminino. Serão mais certamente, mas o importante é tudo aquilo que há que continuar a fazer. O acesso cada vez mais precoce ajuda no prognóstico e na melhoria da qualidade de vida da pessoa e da construção do seu projecto de vida. E falando na qualidade de vida, é fundamental ajudar a que a própria pessoa autista seja o mais autodeterminada e empoderada, para que seja ela própria a conduzir o destino da sua vida. No diagnóstico é necessário que cada vez mais os profissionais de saúde possam ser adequadamente formados para avaliar ao longo do ciclo de vida, crianças, adolescentes e adultos autistas, sejam aqueles com um quadro clínico mais evidente, mas também todos os outros. E que possam estar cientes da expressão comportamental diferenciada no homem/rapaz comparativamente à mulher/rapariga. E nos vários contextos que precisam de continuar a ser sensibilizados, as Universidades e o Mercado de Trabalho, são dois espaços fundamentais. Até porque fazem parte do processo de transição para a vida adulta e da grande maioria deste processo na sua vida.
Os apoios ao longo do ciclo de vida nas pessoas autistas precisa de transpor a barreira da maioridade. Até porque são muitas as pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1) que continuam a não conseguir ter 60% ou mais no atestado multiusos, mas continuam a ter inúmeras dificuldades, seja do ponto de vista clínico mas também em termos de integração psicossocial.
Mas a sensibilização da Sociedade para a saúde mental e para as diferentes perturbações mentais, nomeadamente a Perturbação do Espectro do Autismo, continua a ser uma urgência. As pessoas continuam a precisar de saber mais e melhor o que são e do que se trata estas perturbações. E isto precisa de ser feito desde cedo no desenvolvimento, até porque estes diagnósticos estão a ser feitos cada vez mais cedo e são muitos os anos em que estas pessoas são vítimas de bullying. Esta sensibilização será certamente designativo de uma melhoria de vida das pessoas com estas condições, mas também será uma evidência de uma melhor qualidade de vida de todos nós.
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