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O sentido da vida

Novos, velhos, altos, baixos, deste ou de outro continente, século ou geração, já todos se questionaram sobre o sentido da vida.


Qual é o sentido da vida? Para que servimos? Quem somos nós? Por que estamos aqui? Para que estamos aqui? Qual é a origem da vida? Qual é a natureza da vida? Qual é a natureza da realidade? Qual é o propósito da vida? Qual é o propósito da vida de cada um? Qual é o significado da vida? O que é significativo e valioso na vida? Qual é o valor da vida? Qual é a razão para viver? Para que estamos a viver?


Seja a forma como colocamos a questão, iremos todos ao encontro do mesmo - Qual o sentido da vida?


Como pode uma pessoa autista responder a Quem somos nós? Ou Para que servimos? E atendendo ao número de suicidios no espectro do autismo, como se responde à questão, Qual é a razão de viver? Ou Para que estamos a viver? Num primeiro relance parece que a pessoa autista está de forma inata enviesada nesta procura do sentido de vida. Imersa na procura incessante de um diagnóstico que tarda em chegar a muitos. Ou mesmo quando com um diagnóstico continuar a ser questionado sobre a sua validade! Incompreendido porque muitas pessoas não autistas parecem não querer sair da sua perspectiva para poder pensar a pessoa e a experiência autista. Quantas vidas terá a pessoa autista de viver para que possa construir o seu significado de vida?


Mas como damos significado ou significância a este caminho na procura do sentido da vida? E as pessoas não autistas e autistas farão caminhos semelhantes? Ou terão experiências diferentes que procuram usar para construir esse mesmo significado? Se as pessoas autistas têm um processamento da informação diferente de sí, do outro e da relação com o Mundo, como é que isso impacto na construção do significado da vida? Ou se a neurologia da pessoa autista é diferente, será ela suficientemente diferente ao ponto de impactar negativamente na construção da significância do sentido da vida? E como as pessoas não autistas e autistas pensam sobre o significado uns dos outros?


Prólogo: Da Interrogação Humana


Desde os primórdios da autoconsciência, o ser humano confronta-se com a mais funda e persistente das questões: qual é o sentido da vida? Esta indagação, enraizada na condição existencial de um animal consciente da sua mortalidade, não é meramente retórica ou abstracta. É, ao contrário, uma necessidade evolutiva, uma procura de coerência e orientação num mundo que raramente oferece respostas definitivas. Nesta reflexão, procurarei explorar o sentido da vida de uma forma geral, para depois me debruçar sobre a experiência autista, frequentemente esquecida ou mal compreendida, e que oferece contributos disruptivos e pioneiros para esta reflexão. Até porque, além do ainda grande desconhecimento sobre o autismo, e ainda mais no adulto, parece haver um conjunto de questões que a sociedade julga inatingível à pessoa autista.


O Sentido da Vida na Espécie Humana: Perspectiva Filosófico-Neurocientífica


Do ponto de vista neuroevolutivo, o cérebro humano é uma estrutura moldada para a sobrevivência colectiva, dotada de uma rede de circuitos complexos que favorecem a vinculação, a linguagem, a empatia e a previsão de estados mentais alheios. A consciência reflexiva, emergente do funcionamento coordenado de regiões como o córtex pré-frontal, o sistema límbico e a rede do modo padrão, permite à espécie humana não apenas viver, mas pensar o viver.


O existencialismo filosófico, particularmente nas obras de Kierkegaard, Nietzsche, Sartre ou Camus, compreende esta consciência como simultaneamente dádiva e maldição. O ser humano é um animal projectivo: vive em direcção ao futuro, em permanente construção de sentido, mas também em perpétua angústia perante a ausência de um significado intrínseco.


Sartre afirma que “a existência precede a essência”, devolvendo ao sujeito a responsabilidade de criar o seu próprio sentido. Camus, mais lúcido e melancólico, vê o absurdo como inevitável: o mundo não responde às nossas perguntas, e, contudo, continuamos a perguntar - Qual o sentido da vida? Este “neodarwinismo existencial” propõe que a procura de sentido é, ela própria, uma adaptação evolutiva que favorece a coesão social e a motivação individual. Mesmo que o universo permaneça indiferente, os humanos tornam-se autores da sua significância.


Sociologia do Sentido: Cultura, Norma e Reconhecimento


A sociologia contemporânea, nomeadamente através de autores como Émile Durkheim, Berger & Luckmann, e Axel Honneth, oferece contributos essenciais para compreender a génese social do sentido. A vida adquire significado dentro de um sistema simbólico partilhado, uma cultura, onde o reconhecimento, a pertença e a funcionalidade são centrais.


Durkheim mostrava como a anomia, a ausência de normas claras, gera sofrimento psíquico, enquanto Honneth sublinha o papel do reconhecimento mútuo como condição para a autorrealização. O sentido da vida, nesta perspectiva, é co-construído e intersubjetivo. Mas o que sucede quando um indivíduo é sistematicamente excluído dos modos habituais de partilha simbólica? Que sentido se pode construir à margem das normas dominantes?


A Perspectiva Autista: O Sentido como Diferencial de Coerência


A experiência autista obriga-nos a reconfigurar os quadros ontológicos do sentido. Longe de constituir uma mera “perturbação” do neurodesenvolvimento, o autismo configura uma forma alternativa de processamento do mundo, uma ecologia perceptiva, sensorial, cognitiva e emocional distinta. A neurociência contemporânea, através de investigações sobre conectividade neuronal, processamento sensorial atípico, corrobora esta diversidade funcional. O cérebro autista tende a privilegiar a coerência interna sobre a adesão social, a profundidade sobre a reciprocidade superficial, a autenticidade sobre a convenção.


No entanto, sob o olhar sociológico, o sujeito autista é frequentemente excluído da partilha simbólica normativa. A cultura maioritária, baseada na fluidez comunicativa, nas normas implícitas e nas hierarquias sociais tácitas, tende a marginalizar quem não se adapta aos seus scripts tácitos. O sentido da vida, para a pessoa autista, não pode ser encontrado no espelho do olhar social, que muitas vezes devolve estigmas ou mal-entendidos, mas sim numa busca solitária e profunda de coerência interna, de integração sensorial, de sentido lógico ou estético.


Vida com Sentido na Pessoa Autista: Entre Ordem e Interpretação


O sentido da vida, na experiência autista, tende a ser construído menos em torno da pertença social e mais em torno da congruência existencial. Isto pode manifestar-se em diferentes formas:


  • Sentido através do conhecimento: muitas pessoas autistas relatam experiências de sentido intenso ao explorar sistematicamente uma área de interesse. A hiperfocalização, frequentemente interpretada como rigidez, pode ser uma via de transcendência: um modo de atingir estados de fluxo e de integração subjectiva.


  • Sentido através da ética: há em muitos autistas uma orientação inabalável para a verdade, a justiça ou a coerência moral, que contrasta com o relativismo social dominante. Esta orientação, longe de ser ingénua, pode constituir um fundamento ético mais sólido do que o consenso social, frequentemente permeado por conveniência e dissimulação.


  • Sentido através da estética sensorial: algumas pessoas autistas encontram sentido na pura experiência sensorial, no detalhe de uma textura, na repetição rítmica de um som, no jogo de luzes ou cores. Esta “poética sensorial” não é uma fuga, mas uma forma profunda de presença no mundo.


“A maioria das pessoas acha estranho quando eu fico meia hora a ver as gotas a deslizarem na janela. Para mim, é como música. É o único momento em que sinto que o mundo faz sentido.” (Marta, nome fictício, 17 anos)


“Não é que eu queira estar sozinha. É que o mundo está sempre a falar uma língua que eu não consigo traduzir a tempo. Sinto-me como alguém a ver um filme com legendas atrasadas. Quando tento acompanhar, já perdi o fio.” (Joana, nome fictício, 23 anos)


  • Sentido na relação autêntica: embora a socialização normativa possa ser exaustiva ou opaca, a pessoa autista valoriza profundamente a autenticidade relacional. Quando ocorre uma ligação baseada na transparência, no respeito pela diferença e na ausência de jogos sociais, essa relação torna-se sagrada, uma ilha de sentido num oceano ruidoso.


“Eu não entendo porque é que as pessoas mentem para ser simpáticas. Se não querem estar comigo, prefiro saber. Para mim, ser verdadeiro é mais importante do que ser aceite.” (Tiago, nome fictício, 33 anos)


As pessoas autistas processam a informação com um foco ampliado na coerência interna e na saliência de padrões lógicos ou sensoriais, muitas vezes à margem das convenções sociais. Esta diferença está documentada, por exemplo, nas teorias do funcionamento perceptual aumentado e da hipersistematização, que apontam para um estilo cognitivo orientado para a precisão, a regularidade e a previsibilidade.


Isto significa que o sentido da vida não tende a emergir de normas sociais ou narrativas culturais partilhadas, mas da construção pessoal de sistemas de significado estáveis e consistentes. O mundo não é lido através do consenso social, mas reconstruído a partir de princípios internos. Em vez de perguntar “o que é esperado?”, a mente autista pergunta “o que faz sentido, de forma verdadeira, para mim?”.


O processamento introspectivo é muitas vezes intenso, analítico e contínuo, apesar dos mitos que associam o autismo à ausência de autoconsciência. O que existe, frequentemente, é uma forma menos narrativa e mais conceptual ou fenomenológica de consciência de si. Isso leva a uma busca por significado menos influenciada por papéis sociais e mais centrada na verdade subjectiva, na coerência lógica ou na estética existencial.


O eu autista não se forma no espelho do outro, como propôs Lacan, mas no eco da congruência interna. A identidade não é performativa, é ontológica.


A neurologia autista parece predispor a um compromisso ético com a verdade, com a justiça e com a autenticidade. Isto não é moralismo, mas uma consequência de um cérebro menos permeável às nuances ambíguas da convenção social e mais sensível à dissonância lógica e à incongruência. Muitas pessoas autistas relatam sofrimento diante de hipocrisias sociais que para outros são normais ou funcionais. Por isso, o sentido da vida pode ser vivido como alinhamento entre acção e princípio, viver de forma íntegra, mesmo que isso implique solidão.


Conclusão: O Direito ao Sentido Divergente


O sentido da vida não é uma entidade universal, mas uma construção singular que emerge da interacção entre o cérebro, o corpo, a cultura e a história individual. Na condição autista, essa construção desafia os modelos normativos e propõe novas possibilidades de habitar o mundo: com mais atenção ao detalhe, com mais compromisso ético, com mais autenticidade relacional e com menos ruído simbólico.


Ao invés de patologizar esta divergência, importa escutá-la. Talvez o maior erro da humanidade tenha sido confundir maioria com verdade. Talvez o sentido da vida, afinal, seja múltiplo e plural, e a experiência autista não seja uma falha de adaptação, mas uma chave para imaginar formas alternativas de existência. Neste sentido, a pessoa autista não é um enigma a decifrar, mas uma resposta inesperada à pergunta que todos partilhamos: Como viver uma vida com sentido?


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