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O que é preciso para ser rijo?

Fala-se frequentemente da interação e da comunicação social no espectro do autismo. No entanto, a rigidez cognitiva permanece um tema pouco explorado e insuficientemente compreendido, apesar do impacto expressivo que exerce na vida da pessoa autista e em domínios fundamentais do seu funcionamento. Essa rigidez pode contribuir para o agravamento de sintomatologia depressiva e ansiosa, entre outras manifestações. Por exemplo, na depressão pode revelar-se através de visões excessivamente negativas do mundo; em determinadas perturbações da personalidade pode traduzir-se na manutenção de perspetivas tendenciosamente negativas acerca de si próprio e das pessoas próximas; já no autismo ou na perturbação obsessivo-compulsiva pode manifestar-se sob a forma de comportamentos estereotipados e compulsivos.


Uma adolescente de 14 anos comenta: “Se os planos mudam de repente, sinto que tudo dentro de mim fica em caos. Mesmo que os outros digam que é apenas um pequeno atraso ou uma alteração sem importância, para mim é como se tivesse perdido o chão.”


Quando abordamos a rigidez cognitiva, surgem frequentemente interpretações reducionistas, como a ideia de que a pessoa é apenas teimosa ou inflexível. Por vezes, argumenta-se até que todos nós somos um pouco teimosos. Contudo, importa sublinhar que rigidez cognitiva e teimosia não são equivalentes. A primeira constitui um fenómeno psicológico complexo, distinto e com implicações clínicas relevantes.


A flexibilidade cognitiva, por oposição, refere-se à capacidade de reconhecer mudanças no ambiente e de se adaptar de forma eficiente. Este processo é central para a adaptação quotidiana: gerir alterações nas rotinas e horários, monitorizar e ajustar comportamentos de acordo com as responsabilidades, e facilitar uma comunicação e interação social adequadas. A literatura científica descreve a flexibilidade cognitiva como a aptidão para alternar entre tarefas com exigências discrepantes, bem como a capacidade de mobilizar rapidamente diferentes processos mentais para gerar respostas apropriadas. Esta competência depende de outros processos da função executiva, nomeadamente da memória de trabalho e da inibição.


Um estudante universitário relata: “Se tenho de interromper uma tarefa a meio, não consigo voltar a ela com facilidade. É como se a minha mente ficasse presa no ponto onde parei e não conseguisse mudar de marcha.”


A rigidez encontra-se descrita no DSM-5-TR como característica clínica da Perturbação do Espectro do Autismo, incluindo movimentos ou fala estereotipados, insistência na uniformidade, adesão inflexível a rotinas, padrões ritualizados, comportamentos verbais ou não verbais repetitivos, pensamento rígido e interesses altamente restritos ou fixos. Estas facetas têm impacto profundo nas interações sociais e podem afetar de forma significativa o desempenho académico, profissional e o bem-estar global.


Um adulto de 35 anos comenta: “Todos os dias preciso de tomar o pequeno-almoço exatamente da mesma forma. Se a colher não está no sítio habitual, sinto uma ansiedade que me consome e é difícil continuar o dia.”


Na investigação científica, alguns autores têm enfatizado a associação entre rigidez e intolerância à incerteza, refletida na adesão estrita a rotinas e na necessidade de ambientes altamente estruturados. Outros descrevem as várias expressões da rigidez, como interesses restritos, insistência na uniformidade ou resistência à mudança, sem necessariamente incluir a intolerância à incerteza. O comportamento repetitivo (como o stimming ou a ecolalia), a tendência para alinhar objetos, a dificuldade em mudar de atividade, a simetria e a literalidade são exemplos de manifestações que, frequentemente, permanecem desvalorizadas, mas que podem ter repercussões significativas em contextos educativos e sociais.


Uma criança de 8 anos refere: “Na escola, a professora diz que posso desenhar como quiser, mas eu só quero desenhar o mesmo carro vezes sem conta. Não é porque não saiba desenhar outras coisas, mas porque não consigo parar de pensar nesse carro.”


A rigidez cognitiva pode estar na base de diferenças observadas em atenção, aprendizagem, cognição social e linguagem no autismo. Torna-se assim pertinente questionar se a flexibilidade cognitiva deve ser entendida como um denominador comum entre estes domínios ou como uma construção multidimensional, composta por diferentes facetas interdependentes.


A sua avaliação pode ser realizada por diversas vias. A observação comportamental em instrumentos como o ADOS-2 permite identificar padrões de rigidez, enquanto questionários de auto-preenchimento podem explorar a flexibilidade associada às funções executivas. Estas abordagens revelam a complexidade do conceito, que ora é descrito como um construto uniforme, ora como um fenómeno multifacetado. A título de exemplo, os comportamentos repetitivos podem assumir formas distintas, como stimming ou ecolalia, sugerindo que a rigidez não é um conceito unívoco.


Um jovem adulto sublinha: “Repito certas frases ou palavras porque me acalmam. Sei que os outros acham estranho, mas é como se fosse a única forma de alinhar os meus pensamentos.”


Ambas as perspectivas, a que considera a rigidez de forma uniforme e a que a descreve como um conjunto desconexo de manifestações, apresentam limitações. Por um lado, não é plausível assumir que uma única definição abarque todas as expressões da rigidez no autismo. Por outro, observa-se que algumas destas facetas tendem a agrupar-se em certas populações, o que sugere a necessidade de explorar explicações alternativas.


Entre os fenómenos frequentemente associados à rigidez cognitiva encontram-se interesses fixos e restritos, insistência na uniformidade, rotinas ou rituais, intolerância à incerteza, pensamento dicotómico, adesão estrita às regras, literalidade, fraca coerência central e dificuldades na alternância entre tarefas. Cada uma destas dimensões pode exercer impacto diferenciado nas diversas áreas cognitivas.


Uma jovem de 17 anos ilustra a literalidade: “Se alguém me diz ‘volto num minuto’, eu espero exatamente sessenta segundos. Quando isso não acontece, sinto-me enganada e não sei como reagir.”


A flexibilidade cognitiva manifesta-se em múltiplos domínios. No plano da perceção visual, traduz-se na capacidade de mudar o foco atencional, adaptar prioridades em função das exigências e responder eficazmente às mudanças no meio envolvente. No campo da aprendizagem, significa ajustar não apenas o comportamento, mas também os modelos internos que sustentam a compreensão do mundo. Na cognição social, permite alternar entre diferentes sinais e perspetivas, compreendendo que os pensamentos e sentimentos dos outros podem divergir dos próprios. Finalmente, na linguagem, a flexibilidade cognitiva possibilita a alternância entre diferentes níveis de processamento, fonológico, semântico, sintático, morfológico e pragmático, sustentando o desenvolvimento linguístico e a compreensão da leitura.


Um adulto de 40 anos resume a sua experiência: “Para mim, compreender uma metáfora é um esforço consciente. Primeiro penso na frase literalmente, depois tenho de me lembrar que pode ter outro significado. É como resolver um enigma em cada conversa.”


Em síntese, a rigidez cognitiva no autismo constitui um fenómeno multifacetado, que não pode ser reduzido a simples teimosia ou resistência à mudança. Trata-se de uma característica com impacto transversal no desenvolvimento, na aprendizagem, na cognição social, na linguagem e no bem-estar emocional. As diferentes expressões da rigidez, desde interesses restritos até à literalidade, variam ao longo da vida e assumem significados distintos em cada pessoa, o que sublinha a importância de uma avaliação cuidada e diferenciada. Compreender estas manifestações na sua complexidade permite não só clarificar os mecanismos subjacentes, mas também orientar intervenções mais ajustadas, favorecendo a adaptação, a autonomia e a qualidade de vida das pessoas autistas.

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