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O planeta do contacto evitado

Muito se tem falado da velocidade com que a Sociedade vive o seu quotidiano. Dias antes da grande mudança ainda se chegou a falar de uma qualquer invenção queiria converter a velocidade a que a grande maioria de nós fazia coisas para ser convertido em energia electrica. Uma percentagem significativa de nós nem parecia interessado. Mas isso não deteve a grande mudança. Foi anunciado no dia seguinte a alteração da rotação da terra. Não era apenas as pessoas que estavam a fazer tudo mais rápido. A própria terra estava a girar mais rápido e como tal os dias estavam a ficar substancialmente mais curtos. Como assim, já estamos quase no Natal?!?, a frase repetida por muitos, dando conta da percepção da passagem do tempo. Normalmente complementada com - Os dias parecem ser cada vez mais pequenos! já não era ficção.


Numa sociedade onde o funcionamento autista é o padrão civilizacional, com estruturas, instituições e linguagem moldadas para a literalidade, a previsibilidade e o controlo sensorial, os neurotípicos são a minoria silenciosa. Considerados instáveis, ambíguos e propensos à desregulação afectiva, vivem em constante esforço adaptativo para não perturbar a ordem.


Lúcia é uma dessas pessoas. Neurotípica desde o nascimento, aprende a sobreviver num mundo que a lê como defeituosa. Mas à medida que cresce, e com o encontro com Alda, uma mulher autista que começa a questionar os limites do seu próprio mundo, nasce uma ideia revolucionária: criar Valesol, uma aldeia onde diferentes modos de existir possam coexistir.


Entre discursos parlamentares, revoltas sensoriais, amizades improváveis e gestos incompreendidos, O Planeta do Contacto Evitado é uma narrativa sobre empatia, poder, e a eterna negociação entre o que se sente e o que se diz.



Capítulo I — O Silêncio como Língua Franca


No mundo de Andros, fazer contacto visual era considerado invasivo, quase obsceno, como espreitar pela fechadura do pensamento alheio. Conversar sobre o tempo era encarado como uma agressão sensorial, e a small talk punha em risco a coesão moral da comunidade. Naquele mundo civilizacionalmente avançado, as pessoas eram encorajadas a comunicar com exactidão, literalidade e previsibilidade. A espontaneidade era tolerada nas crianças pequenas, com supervisão, mas nos adultos, era sinal de instabilidade regulatória.


Os cidadãos androsianos tinham rotinas cuidadosamente organizadas e a pontualidade era um acto de respeito sagrado. Qualquer atraso era comunicado com antecedência de, no mínimo, quarenta minutos, acompanhado de uma explicação racional ou um pedido de dispensa empática por sobrecarga emocional.


Foi neste mundo que nasceu Lúcia, uma jovem neurotípica.


A palavra “neurotípica” em Andros era usada com cautela, pois era considerada uma condição de desenvolvimento atípico. Os manuais escolares descreviam-na como uma diferença neurológica marcada por “hiperflexibilidade comportamental”, “excesso de leitura subtextual” e uma propensão preocupante para a socialização desregulada. Alguns textos antigos chamavam-lhe “Síndrome de Leitura de Expressões Faciais”, o que causava arrepios em alguns professores mais sensíveis.


Lúcia, com seis anos, foi pela primeira vez à Escola de Interesses Intensos. Foi colocada na Sala Cinzento-Névoa, com paredes insonorizadas e iluminação ajustável ao espectro sensorial de cada aluno. As carteiras eram dispostas em semi-círculo invertido, para que nenhum olhar se cruzasse por acidente. Cada criança tinha um cubículo de regulação emocional com almofadas, fones de cancelamento de ruído e um painel táctil com ícones emocionais, que substituíam a necessidade de verbalizar estados internos desnecessariamente.


Lúcia, que gostava de perguntar “como estás?” a cada vinte minutos, causava perturbação entre os colegas. Um deles, Tobias, de sete anos, especialista em comboios do século XIX, registou no diário de turma:


“A colega Lúcia interrompeu a linha narrativa da aula para comentar a camisola da professora. A camisola não tinha relevância temática. Sugiro intervenção especializada.”

Tobias foi promovido no fim do semestre a Guardião de Coerência Contextual.



Capítulo II — O Adulto Desregulado


Com o tempo, Lúcia aprendeu a modular os seus impulsos de empatia explícita. Passou a dizer “bom dia” apenas uma vez por semana, às terças, e apenas a colegas com quem tivesse uma relação profissional estritamente definida. Ainda assim, no seu primeiro emprego, num arquivo documental sobre minerais raros, foi chamada à chefia após sorrir durante uma reunião.


— Lúcia, precisamos conversar! disse a supervisora, Adélia, uma mulher autista com grande prestígio na área da paleolinguística dos minerais. — Há relatos de que estás a usar expressões faciais ambíguas.


— Ambíguas? — perguntou Lúcia, tentando não franzir a testa, mas já tarde demais.


— Sim. Os teus colegas não conseguiram identificar se estavas a ironizar ou se estavas prestes a chorar. Isso é dissonante. Em Andros, como sabes, não encorajamos mensagens contraditórias. Isso pode gerar disforia interaccional.


Lúcia foi inscrita num Programa de Reeducação Neurocomportamental para Neurotípicos Integrados (PRONI). Recebeu um manual com 128 páginas de instruções para comunicar em conformidade com o Manual de Literalidade Androsiana. A introdução dizia:


“O neurotípico precisa de treinar a redução da inferência emocional e a contenção do entusiasmo partilhado. Lembre-se: em Andros, perguntar ‘como te sentes?’ pode ser interpretado como intrusão emocional de grau II.”

Capítulo III — Um Chá com Alda


Alda era uma mulher autista de cinquenta e sete anos, reformada das funções de curadoria taxonómica do Museu de Sons Não Verbais. Tinha a casa organizada por temas e subtemas: uma sala inteira para texturas, outra para sons brancos, e a biblioteca, com prateleiras organizadas por nível de previsibilidade narrativa.


Alda acolheu Lúcia com algum ceticismo, mas também curiosidade sincera.


— Podes sentar-te aí. É a cadeira das pessoas que não seguem padrões previsíveis. Está protegida com revestimento acústico.


— Obrigada… — disse Lúcia, com um sorriso tímido, gesto que Alda ignorou por descuido e não por desrespeito.


— Gostava de entender melhor como funciona o teu cérebro — continuou Alda. — Dizem que sentes empatia apenas com base em expressões faciais. Isso é seguro?


Lúcia encolheu os ombros. — Às vezes falha. Mas também falham os protocolos de literalidade. Às vezes as palavras não bastam.


Alda ponderou longamente antes de responder. — Tens razão. Às vezes o silêncio diz mais do que o protocolo.


Ficaram ambas caladas durante cinco minutos. Alda considerou esse momento como um dos mais profundos da sua vida. Lúcia interpretou-o como desconforto. Nenhuma corrigiu a outra.



Capítulo IV — Conferência sobre Comunicação Multimodal


A Universidade Central de Andros organizou o primeiro congresso nacional sobre Neurotipicidade Minoritária. O cartaz era claro:


“Diversidade sem Ambiguidade — Estratégias para integrar a Neurotipicidade sem comprometer a Ordem Autística.”

Lúcia foi convidada para uma mesa redonda. Sentia-se como uma flor tropical a tentar respirar num aquário de peixes de água fria. Sentou-se, esperou o seu momento e começou:


— Gostava de propor que a imprevisibilidade emocional também pode ser uma forma de coerência. Coerência com a vida. A vossa organização é bela e precisa, mas às vezes sinto que os sentimentos se perdem algures entre a página 47 e o parágrafo 6 do manual de interacção.


Silêncio.


Um senhor do público levantou-se. Tinha uma colecção de pedras vulcânicas e era conhecido pelas suas intervenções meticulosas.


— Compreendo a tua posição. Mas pergunto: se todos começássemos a interpretar expressões faciais como tu, não entraríamos num caos semântico?


Lúcia sorriu.


— Talvez. Mas também talvez encontrássemos novos significados.


A conferência terminou com um voto de moção para criar um grupo de trabalho sobre “Empatia Ambígua”. Foi considerado um gesto radical.


Capítulo V — Tobias e a Anarquia do Improviso


Tobias, aos trinta e dois anos, era agora Curador-Chefe do Arquivo Nacional de Narrativas Cronologicamente Coerentes. Era conhecido pela sua habilidade em detectar desvios temporais em relatos históricos, inclusive nos sonhos, que considerava “ficção autobiográfica desorganizada”. Nunca improvisava. Carregava consigo um bloco de notas onde registava todas as possíveis respostas a perguntas comuns, devidamente organizadas por categorias: “Profissional”, “Socialmente Tolerável”, “Necessária Apenas em Casamentos”.


Um dia, foi convidado a uma festa organizada por um pequeno grupo de neurotípicos integrados. Aceitou com hesitação, acreditando que a festa seria como nos livros de protocolo social: um guião, música ambiental discreta e zonas de fuga sensorial.


Quando chegou, deparou-se com algo chamado “karaoke emocional”.


Lúcia, agora com trinta e cinco anos, liderava o evento. Já não trabalhava em arquivos. Criara uma cooperativa de expressão espontânea chamada “Fragmentos Incertos”, onde se celebrava a linguagem do imprevisto e da emoção intuitiva. A cooperativa era alvo de suspeitas e também de um certo fascínio. Alguns chamavam-lhe “secta sensorial”.


— Tobias! — gritou Lúcia, com entusiasmo não regulamentado. — Vens cantar?


— O quê?


— Uma canção que diga o que sentes agora!


— Eu… neste momento, sinto receio de uma explosão de caos estrutural. — respondeu Tobias, lívido.


— Então canta isso!


Tobias saiu da festa trinta e dois minutos depois. Escreveu no seu diário:


“Hoje confrontei-me com um ambiente desprovido de previsibilidade. Sinto uma ligeira excitação difusa. Preocupante. Talvez também… curiosidade?”

No dia seguinte, voltou.


Capítulo VI — A Aldeia Sem Roteiro


Inspirada pelo diálogo com Alda e pela sua própria história de exclusão adaptativa, Lúcia fundou, com apoio de alguns autistas progressistas, a primeira aldeia experimental: Valesol, um espaço onde o neurotípico poderia viver sem a obrigação da contenção.


A ideia era simples: em Valesol, expressar sentimentos em voz alta não era considerado invasivo, mas poético. Os horários existiam apenas como sugestão. As paredes não eram insonorizadas, mas tinham texturas tácteis que mudavam consoante o estado emocional de quem as tocava. Havia um protocolo — claro, que não fosse tudo caos — mas era um protocolo que admitia o erro como parte da paisagem humana.


Alda visitou Valesol numa tarde de céu estável.


— Isto é… desconcertante. — disse, enquanto observava uma mulher a dançar sozinha no meio da praça, com auscultadores invisíveis.


— É, sim. Mas repara: ela não espera que tu faças o mesmo. Está só a viver. Isso não ameaça a tua estrutura. — explicou Lúcia.


Alda sentou-se. Retirou da mala um pequeno caderno onde escrevia todas as metáforas que não compreendia.


— Sabes, Lúcia… Durante muito tempo achei que empatia era ruído. Agora começo a desconfiar que talvez seja uma espécie de música. Só que eu ouço em partitura, e tu improvisas.


— E se a vida for as duas coisas? Uma sinfonia escrita a duas mãos — uma que planeia, outra que sente?


Alda não respondeu. Mas ficou. Uma semana. Depois um mês.


Capítulo VII — O Parlamento da Ambiguidade


O sucesso de Valesol gerou desconforto institucional. Um deputado do Partido da Ordem Literal propôs uma comissão para investigar “práticas comunicacionais desviantes com risco de contágio metafórico”.


Durante o debate, Tobias surpreendeu a assembleia ao declarar:


— Estive em Valesol. Ao princípio, tive ataques de hiperliteralidade defensiva. Mas depois… descobri algo. Um espaço onde a minha estrutura não era descartada, apenas coexistia com outra forma de ordem. Uma ordem emocional.


Silêncio.


O deputado retrucou:


— Senhor Tobias, não teme que essa convivência desregule os parâmetros da previsibilidade social?


— Não. Temo mais a ideia de um mundo onde só uma forma de ser é considerada válida.


A proposta de sanção a Valesol foi chumbada por dois votos. O Parlamento criou, em vez disso, um novo ministério experimental: o Ministério da Convivência Incongruente.


Capítulo VIII — Epílogo para um Futuro Possível


Lúcia e Alda abriram uma escola em Valesol. Chamava-se “Entrelinhas”, onde crianças autistas e neurotípicas aprendiam juntas. O currículo incluía:


  • Leitura Literal e Metafórica;

  • Expressão Emocional com e sem palavras;

  • Técnicas de Regulamentação Mútua;

  • História da Empatia e do Silêncio.


Na formatura da primeira turma, Tobias foi orador convidado. Leu uma citação de um autor desconhecido:

“Entre o impulso e a contenção, entre o gesto e o cálculo, vive a humanidade. Talvez sejamos todos estrangeiros em mundos que não criámos. Mas podemos aprender a ser hóspedes uns dos outros.”

Houve aplausos. Alguns tímidos. Outros efusivos. E pela primeira vez em Andros, isso não importou.



FIM


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