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O peso do luto: O luto oculto na pessoa autista

"A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto."

Fernando Pessoa in A morte é a curva da estrada


O meu luto nunca é apenas a minha reacção à perda daquela pessoa ou animal. O meu luto também é aquele que sinto por mais uma vez não estar a cumprir aquilo que as pessoas da minha família acham que eu deveria estar a fazer. O meu luto também é aquele que sinto por haver todo um conjunto de coisas que na minha vida vão deixar de ser iguais porque aquela pessoa ou animal que eu tanto gostava de estar deixou de estar. O meu luto também é aquele que sinto de não querer fazer luto porque sinto que não estou preparado ou tenho medo de piorar ainda mais a minha vida e como me sinto e ao mesmo tempo sentir que não devia estar a pensar e sentir isso, o que me faz sentir uma pessoa ainda mais horrível. Joana (nome fictício), pessoa autista de 37 anos


Parece que não sente nada! Nem sequer chorou! Não chegou a ir ao funeral. Nunca mais falou do pai. É como se a pessoa nunca tivesse existido para ela. Como é possível falar do avô daquela forma desrespeitosa? Parece se feito de pedra. Como é que ela consegue ser assim tão insensível?


Estas e outras frases são habituais de serem ouvidas quando alguém faleceu e na família há uma pessoa que tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Não é incomum que pais ou companheiros/as me procurem perguntando se os seus filhos ou companheiros/as autistas serão insensíveis ou não terão sentimentos por não terem observado uma reação emocional da parte deles.


Não é apenas nas questões do luto e da perda que se ouve esta ideia de que as pessoas autistas podem ou parecem não ser sensíveis em relação a estas experiências. Na verdade, como se pensa que as dificuldades, habitualmente designadas de deficit, na interacção e comunicação social, são características nucleares no diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Pensa-se que as pessoas autistas parecem impermeáveis e insensíveis a tudo ou quase tudo o que diz respeito a sentir emoções, suas e dos outros.


A experiência de luto e perda não é apenas pessoal, mas também é social, aprendida na convivência com os outros, moldada por regras sociais e culturais e com um conjunto próprio de rituais. Como tal, a sociedade tem expectativas sobre como todos nós devemos lidar com o luto, mas essas normas muitas vezes não correspondem à forma como as pessoas autistas processam e expressam a perda, assim como tantos outros aspectos da vida. Esse desalinhamento pode levar a sentimentos de alienação, frustração ou até mesmo vergonha quando o luto não se enquadra naquilo que é definido como padrões convencionais, habitualmente ancorados em padrões não autistas.


Em primeiro lugar quero dizer que as pessoas autistas não são insensíveis ou impermeáveis ao luto ou à perda. Mas tal como em tantas outras situações podem expressar de uma forma diferente face à vivência da sua experiência de luto ou perda. Mas como continua a haver um tão grande desconhecimento em relação a tantos aspectos da vida das pessoas autistas, este é mais outro. E como tal as reacção das pessoas não autistas continuam a ser muito ancoradas em crenças e estereótipos.


O luto pode causar respostas emocionais, comportamentais, físicas e cognitivas em adultos autistas semelhantes às observadas na população em geral. As respostas ao luto podem ser afectadas pela compreensão e capacidade de comunicação de cada indivíduo. Para algumas pessoas autistas, lidar com a natureza abstracta da morte pode ser difícil. Como muitos autistas são pessoas que pensam de forma mais concreta, pode ser possível compreender que uma pessoa morreu, mas mais difícil identificar e expressar sentimentos sobre essa ausência. Além de, algumas pessoas autistas adultas podem apresentar uma reação emocional tardia à perda.


O luto numa pessoa autistas pode resultar em: i) Nenhuma mudança aparente no comportamento ou falta de afecto. Sendo que estas características podem ser intrisecas ao perfil de funcionamento da pessoa autista, seja com ou sem uma perda. Tanto em pessoas autistas como neurotípicas em luto, essa resposta não deve ser confundida com falta de compreensão ou tristeza; ii) Regressão, ansiedade e stress resultando em um sentimento de desconexão das próprias emoções e/ou de não sentir o que os outros esperam que sintam. Sendo que este sentimento é muito frequentemente observado em pessoas autistas - sentir que não estão a cumprir as expectativas das outras pessoas, normalmente pessoas não autistas; iii) Aumento de comportamentos de habitualmente usados para se auto-regular; recusa de alimentos; sobrecarga sensorial; perda de clareza na comunicação verbal, aumento da argumentação ou discurso oposicionista; aumento das explosões emocionais, ou choro prolongado; ausência de choro; ou agitação geral; iv) Ruminação sobre uma morte ou circunstâncias que a rodeiam, fazendo com que a pessoa se sinta presa naqueles pensamentos. Contudo, a ruminação é uma característica comum do autismo, e a experiência de uma perda pode ampliar essa tendência. Por exemplo, especialmente em casos de morte súbita ou violenta, uma pessoa autistas pode imaginar a situação em torno da morte repetidamente, como um loop constante nos seus processos de pensamento (isso também não é incomum para pessoas neurotípicas traumatizadas em luto); v) Aumento de comportamento de ecolalia; vi) maior dificuldade de expressar, descrever ou identificar emoções, normalmente devido à presença de alexitimia; vii) Ansiedade relacionada à forma de reagir adequadamente à morte ou aos rituais que a cercam. Essas preocupações podem incluir como e o que comunicar sobre a morte e/ou os seus sentimentos; como se vestir ou se comportar em um ambiente como um serviço memorial ou funeral; como responder a emoções fortes manifestadas por outras pessoas em luto; ou como a sua vida pode mudar como resultado da morte; viii) Manifestações físicas/somáticas aumentadas como náuseas, dores de cabeça, dores no corpo e distúrbios intestinais ou menstruais; ix) Distúrbios do sono, como aumento do tempo de sono durante o dia, dificuldade em permanecer acordado, despertares noturnos e/ou insónia.


Não obstante estas e outras informações que vão sendo descritas relativamente à forma como as pessoas autistas podem vivenciar uma experiência de luto ou perda. É importante como profissionais de saúde encontrar/ ir ao encontro de cada pessoa onde ela está. E neste caso podemos ter de sentir uma outra disponibilidade, espaço e tempo terapêutico para ir ao encontro da pessoa autista na vivência desta sua experiência.


Pode ficar chocado, por exemplo, porque o seu filho parece estar a banalizar a morte do seu tão querido avô. Mas é muito provável que não seja esse o caso. Pode ser a maneira dele de tentar aceitar uma morte com a qual está a ter dificuldade em lidar. Frequentemente vejo-me como um mediador entre a pessoa autista e não autista para ajudar a descodificar algumas das suas experiências, tal como neste exemplo sobre a morte do avô. Não que a pessoa autista não o saiba ou consiga fazer. Mas naquele momento especifico pode não estar tão capaz de o fazer. E o tempo de vivência daquela experiência é diferente entre a pessoas autista e não autista. E esta descodificação pode ajudar a que uns e outros possam continuar a sentir e pensar aquilo que consideram mais importante sem ficarem reféns destas maiores dificuldades em compreender o outro, mas também a si próprio.


Muitas vezes, nas pessoas autistas parece que assistimos à vivência de um luto escondido. Ou seja, o sentir sobre a experiência está lá, mas a forma como está a ser expresso pode não ser tão visível para muitos de nós, principalmente pessoas não autistas. Além de sabermos que muitas pessoas autistas vivenciam estas e outras experiências de forma mais cognitiva, mas também silenciosa, nos seus pensamentos. O luto oculto representa sentimentos de luto privado, perda sobre perda e as reações de luto frequentemente não reconhecidas que emergem de transições impostas.


Também me parece importante que pensar sobre o luto e a perda do Outro, também é pensar sobre a nossa própria finitude. E esse aspecto, igualmente desafiante para qualquer um de nós. Pode levar a que a pessoa autistas, tendo todo um conjunto de outras fragilidades, nomeadamente ferramentas, emocionais e metacognitivas, para se pensar, pensar na sua existência e como tal também na sua finitude. Possa ter maior dificuldade, mas também maior impacto emocional com a experiência de luto e perda de outra pessoa e/ou animal.


Como é que as pessoas neurodivergentes vivenciam e compreendem o luto e a perda? De que maneiras as pessoas neurodivergentes (re)constroem o conhecimento e transmitem as suas próprias experiências e narrativas de luto e perda? Quais são os impactos concretos do luto e da perda na saúde mental das pessoas neurodivergentes? São tantas e profundas as questões em torno da experiência de luto e perda nas pessoas autistas. Tantas quando a própria diversidade e heterogeneidade observada no espectro do autismo. Também aqui precisamos de escutar e saber acolher as pessoas autistas e aguardar a sua partilha sobre estas suas experiências. E mostrar disponibilidade para caminhar com eles neste processo, num espaço e tempo único e que é seu. Nós seremos os convidados para esta cerimónia e ritual, neste lugar que se quer terapêutico, no caso especifico do acompanhamento psicológico que faço com as pessoas autistas. Mas que em outras situações, excepto a questão terapêutica, o resto se parece aplicar igualmente bem.


 
 
 

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