O Corpo Autista entre Culturas e Silêncios
- pedrorodrigues
- há 1 dia
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O corpo humano não é apenas matéria, é também uma constelação de representações, uma cartografia de percepções que se desenha em camadas invisíveis, onde o sensorial, o motor e o cognitivo entrelaçam-se. Fala-se, na ciência contemporânea, de esquemas corporais que operam no silêncio da consciência, e de imagens corporais que florescem no palco do pensamento. Mais recentemente, propõe-se que ambos coexistem com um modelo offline, uma espécie de memória subterrânea do corpo, que o orienta para além do imediato. A estes planos, soma-se a memória corporal, essa sedimentação temporal que confere espessura ao existir.
O corpo, em qualquer latitude, é sempre mais do que pele e músculo. É uma teia de representações invisíveis, que integram sensações, memórias, gestos e significados. Nas pessoas autistas, este território ganha nuances próprias, desafiando a norma e revelando outras formas de ser no mundo. Se a biologia oferece a estrutura, a cultura oferece o espelho. É nesse jogo de reflexos e silêncios que o corpo autista se constrói, muitas vezes entre fragmentos de pertença e desertos de exclusão.
Mas como se desenham estas representações em pessoas autistas, cujos modos de habitar o corpo e o mundo não se enquadram nos moldes normativos da cultura dominante? E como se transformam estas representações quando atravessadas por diferentes tradições culturais, por contextos que, em vez de acolher, muitas vezes silenciam?
No autismo, o corpo pode emergir como uma paisagem de intensidades sensoriais. O toque pode ser demasiado ou demasiado pouco, o som pode ferir ou desaparecer no fundo de um ruído contínuo. A propriocepção pode desalinhar-se, fazendo do corpo um enigma que não responde como o esperado. Assim, o esquema corporal pode ser mais instável, mais sujeito a desvios na forma como integra o fluxo sensorial e motor. Esta instabilidade, contudo, não é ausência de representação, mas antes um outro modo de representá-la: um corpo que se sente em fragmentos, em ritmos, em pulsações que não seguem a cadência social.
Na imagem corporal, o desafio torna-se ainda mais profundo. Viver numa sociedade que constantemente devolve ao sujeito autista a sensação de inadequação e diferença pode erodir a consciência de pertença ao corpo. O corpo pode tornar-se palco de alienação, de distância. Mas também pode ser refúgio, território íntimo, espaço onde o silêncio social não invade. A cultura, aqui, atua como filtro: em contextos que valorizam a interdependência, pode existir maior aceitação das singularidades corporais; em culturas mais individualistas, o corpo autista pode ser visto como falha, e a imagem corporal moldada por esse reflexo negativo.
A filosofia lembra-nos que o corpo é sempre um ser-no-mundo, como escreveu Merleau-Ponty, uma presença situada que é, simultaneamente, perceção e expressão. No autismo, esse ser-no-mundo é atravessado por camadas de sensorialidade que a maioria desconhece. As representações corporais autistas não são menos, mas diferentes: são memórias corporais que se escrevem em texturas e padrões, em movimentos repetidos que funcionam como âncoras existenciais, em modos de estar que recusam a lógica linear da produtividade.
O existencialismo acrescenta outra dimensão: o corpo autista pode carregar a tensão da escassa participação social, uma sensação de estar à margem da partilha comum. Esse estar-à-margem reconfigura a representação do corpo como um corpo-estrangeiro, não apenas para os outros, mas também para si. No entanto, nesse estrangeirismo pode nascer a autenticidade, um modo de corporificar a diferença como expressão própria.
Do ponto de vista psicossomático, a experiência do corpo autista não é apenas neurológica, mas também afetiva e cultural. As cicatrizes emocionais de uma vida marcada por exclusão moldam a forma como o corpo é sentido, podendo gerar representações de fragilidade, de peso ou de invisibilidade. Por outro lado, onde existe acolhimento e valorização, as representações corporais podem florescer em vitalidade, em segurança, em confiança no próprio movimento.
As culturas, em sua diversidade, oferecem horizontes distintos. Em sociedades orientais que concebem o corpo como extensão da comunidade, o corpo autista pode ser integrado em redes de cuidado. Em culturas ocidentais, onde o corpo é muitas vezes instrumento de performance e eficácia, o corpo autista corre o risco de ser visto como insuficiente. E, no entanto, em todas as culturas, surgem vozes e movimentos que procuram reescrever esta narrativa, devolvendo ao corpo autista a sua dignidade ontológica.
Na tradição ocidental contemporânea, fortemente marcada pelo individualismo e pela lógica da performance, o corpo é avaliado pelo seu rendimento e pela sua conformidade. O corpo belo é o produtivo, o que se ajusta, o que responde às exigências sociais com fluidez. Neste cenário, a experiência autista pode ser violentamente confrontada. Estereotipias, gestos repetidos, modos distintos de coordenação motora são muitas vezes lidos como falhas ou dissonâncias. A imagem corporal da pessoa autista, neste contexto, tende a ser ferida pela constante devolução da diferença como defeito. Surge o risco de um corpo que se sente permanentemente inadequado, corpo-vulnerável, corpo-observado, corpo-outro.
Já em culturas orientais, particularmente em sociedades que valorizam a interdependência, como algumas tradições japonesas ou chinesas, a representação do corpo autista pode assumir outras cores. Se por um lado existe igualmente a pressão para se conformar ao coletivo, por outro há espaços culturais onde o corpo não é apenas individual, mas extensão da família ou da comunidade. Assim, a diferença pode ser acolhida como parte do todo, ainda que com ambiguidades. A experiência corporal autista pode ser vivida com menos sensação de falha pessoal e mais como uma variação a ser integrada. O corpo aqui é corpo-rede, mesmo quando se diferencia.
Em culturas indígenas, sobretudo nas que mantêm cosmologias animistas e relacionais, o corpo não é separado da terra, do ritmo da natureza, das forças espirituais. A diferença corporal não é necessariamente traduzida em termos de deficiência, mas pode ser interpretada como singularidade de conexão ou de sensibilidade. Uma criança autista que reage intensamente ao som do vento ou ao brilho da água pode ser vista como portadora de uma escuta especial do mundo. O corpo autista, neste contexto, pode ganhar uma dimensão de corpo-ponte, corpo-oráculo, corpo que participa noutra camada do real.
Estas diferenças mostram que a representação corporal não é apenas uma função neurocognitiva, mas também um processo cultural, um diálogo entre o íntimo e o social. A memória corporal da pessoa autista, atravessada pela escassa participação na vida comum, pode carregar silêncios pesados em sociedades onde o corpo é medido pela sua capacidade de normalização. Mas pode igualmente carregar gestos de potência, em contextos onde a alteridade é reconhecida como parte do tecido comunitário.
A psicossomática ensina-nos que o corpo guarda as marcas da experiência. A exclusão pode inscrever-se em tensões musculares, retraimentos posturais, fugas do olhar. Mas o acolhimento pode reescrever essas inscrições, libertando movimentos, permitindo que a pessoa autista sinta o corpo não como cárcere, mas como casa. Aqui, cada cultura oferece um script diferente: no Ocidente, um palco onde é difícil escapar à comparação; no Oriente, uma coreografia onde a adaptação é exigida mas também acompanhada; nas comunidades indígenas, um círculo onde até a diferença pode ser reverenciada.
Assim, o corpo autista em diferentes culturas é corpo-fragmento e corpo-rede, corpo-vulnerável e corpo-sagrado, corpo-excluído e corpo-reverenciado. A sua representação oscila entre invisibilidade e destaque, entre silêncio e celebração. No fundo, cada cultura devolve à pessoa autista uma imagem diferente do seu próprio corpo. O desafio ético e existencial que nos cabe é reescrever este reflexo, para que, em qualquer lugar do mundo, o corpo autista possa ser vivido como corpo-pleno, corpo-habitação, corpo-mundo.
O corpo autista é, assim, um território de paradoxos: vulnerável e resistente, estranho e íntimo, fragmentado e coeso, invisível e luminoso. As suas representações, atravessadas por cultura, memória e diferença, recordam-nos que não existe uma única forma de habitar o corpo. Talvez seja precisamente no autismo que a humanidade reencontra o lembrete de que o corpo é sempre mais do que a norma lhe impõe. O corpo, afinal, é mundo vivido, é poesia sensorial, é alteridade encarnada.

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