O autismo mora aqui
- pedrorodrigues
- há 2 dias
- 5 min de leitura
"Os pobrezinhos são bem bruto energia
Coitadinhos melhor que leite do dia
Alimentado sopa gode quando calha
Lá fazem vida que Deus lhes valha
Contra a pobreza exporto a minha tristeza
Contra a miséria ja nem faço cara séria
Se estou com fome canto o fado p'ra esquecer"
Virgem Suta, in Exporto Tristeza (2012)
Os dados mais recentes indicam que quase 2 milhões de pessoas estão em risco de pobreza, e a taxa de risco para idosos subiu significativamente! Ouvia-se hoje de manhã na abertura das noticias nas rádios.
O mais recente relatório da Pordata veio recordar-nos uma realidade persistente e cruel. Quase dois milhões de portugueses estão em risco de pobreza, e entre os idosos esse risco tem vindo a aumentar. A pobreza em Portugal é uma ferida antiga, mas o seu impacto sobre grupos específicos da população permanece insuficientemente explorado. Entre estes grupos encontram-se as pessoas autistas, frequentemente ausentes das estatísticas, esquecidas nas margens do debate público e negligenciadas nas respostas sociais e de saúde.
A relação entre pobreza e saúde mental está amplamente documentada. A insegurança económica, a instabilidade habitacional, a precariedade laboral e a exclusão social contribuem para um aumento significativo da ansiedade, depressão e stress crónico. No entanto, quando introduzimos o autismo nesta equação, a complexidade multiplica-se. O autismo não é apenas uma condição neurológica; é também um marcador de vulnerabilidade social, sobretudo quando o contexto económico é adverso.
Uma mulher autista de 34 anos escreveu numa rede de apoio: “Não é só o barulho das luzes do supermercado que me cansa. É o medo de não conseguir pagar a renda no fim do mês. Vivo em constante sobressalto. O mundo não está feito para nós, e o sistema de apoio também não.”
A pobreza amplifica todas as barreiras já existentes para as pessoas autistas. A dificuldade de acesso ao diagnóstico, à terapêutica e ao acompanhamento especializado é uma constante. No sector público, as respostas são escassas, lentas e fragmentadas. No sector privado, o custo é proibitivo para a maioria das famílias. O resultado é uma desigualdade estrutural que perpetua o sofrimento.
Um pai de um jovem autista desabafa: “O diagnóstico chegou tarde. Esperámos quase três anos por uma avaliação no público. Não tínhamos dinheiro para ir ao privado. Durante esse tempo, o meu filho foi ficando cada vez mais isolado, mais ansioso, e eu sentia-me impotente.”
A literatura internacional começa a documentar um fenómeno alarmante: o aumento do número de pessoas autistas a viver abaixo do limiar de pobreza, algumas mesmo em situação de sem-abrigo. Estudos no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Austrália revelam que a exclusão laboral e a ausência de políticas adaptadas colocam as pessoas autistas numa situação de vulnerabilidade extrema. Estima-se que entre 70% e 80% dos adultos autistas estejam desempregados ou subempregados. Esta exclusão tem repercussões devastadoras na autonomia, na autoestima e na saúde mental.
Em Portugal, faltam dados específicos sobre o cruzamento entre autismo e pobreza. A ausência de investigação nesta área traduz-se numa invisibilidade estatística que alimenta o silêncio político. É como se estas pessoas não existissem dentro dos números. Contudo, existem, e vivem com uma intensidade de sofrimento que raramente chega às esferas de decisão.
Uma mãe cuidadora partilhou: “Estou esgotada. Trabalho em part-time para poder estar com o meu filho, que precisa de mim a tempo inteiro. As contas acumulam-se. A saúde mental aqui em casa é um luxo que já não podemos pagar.”
A pobreza não é apenas económica. É também relacional, simbólica e institucional. Para as pessoas autistas, ela manifesta-se na ausência de acessibilidade nos serviços, na falta de formação dos profissionais, na incompreensão social e na escassez de apoios financeiros. A precariedade económica agrava as dificuldades emocionais e cognitivas, criando um ciclo de vulnerabilidade difícil de quebrar.
É urgente repensar o modelo de resposta. Um sistema de saúde mental verdadeiramente inclusivo precisa de integrar a especificidade do autismo em todas as suas dimensões: avaliação, intervenção e acompanhamento. As políticas públicas devem reconhecer que o autismo e a pobreza não são categorias estanques, mas dimensões que se entrelaçam e amplificam mutuamente.
A pobreza rouba tempo, energia e esperança. Para as pessoas autistas, rouba também a possibilidade de viver com dignidade num mundo que lhes é frequentemente hostil. Num país onde a desigualdade ainda dita o acesso ao cuidado, é necessário que a justiça social seja também neurodiversa.
Um jovem autista resumiu-o com uma lucidez comovente: “Dizem que sou invisível. Eu digo que só não querem olhar.”
Portugal enfrenta hoje um desafio ético e político. O combate à pobreza e a promoção da saúde mental exigem uma abordagem interseccional que inclua as pessoas autistas, não como exceção, mas como parte essencial da comunidade humana. O verdadeiro progresso não se mede apenas pelos indicadores económicos, mas pela capacidade de um país cuidar dos seus cidadãos mais vulneráveis.
Enquanto as estatísticas crescem, e os relatórios se sucedem, resta-nos uma pergunta fundamental: de que vale uma sociedade que vê, mas não age?
Caminhos de Intervenção e Políticas Públicas
Para quebrar o ciclo entre pobreza, autismo e saúde mental, é necessário um compromisso político, científico e ético. Algumas medidas concretas poderiam abrir caminho a uma resposta mais justa e sustentável:
1. Criação de um Observatório Nacional do Autismo e Desigualdade Social
Este organismo teria como função recolher, analisar e divulgar dados sobre as condições de vida, o emprego, o acesso à saúde e o bem-estar das pessoas autistas em Portugal. A inexistência de dados sistemáticos impede a formulação de políticas eficazes. A investigação deve integrar indicadores socioeconómicos, permitindo compreender como a pobreza afeta a trajetória de vida das pessoas autistas.
2. Reforço da rede pública de diagnóstico e acompanhamento
O Estado deve garantir o acesso gratuito e atempado ao diagnóstico e à intervenção, reduzindo os tempos de espera e ampliando as equipas multidisciplinares nos cuidados de saúde primários. Isto implica formação contínua para profissionais de saúde, educação e serviço social, com ênfase na literacia sobre o espectro do autismo e as suas comorbilidades.
3. Políticas de inclusão laboral adaptadas à neurodiversidade
O desemprego é uma das principais fontes de exclusão. São urgentes programas de integração profissional que considerem as especificidades cognitivas e sensoriais das pessoas autistas. Modelos de emprego apoiado, incentivos fiscais às empresas inclusivas e a criação de cooperativas sociais geridas por pessoas neurodivergentes são estratégias com provas dadas noutros países.
4. Apoio económico às famílias cuidadoras
O cuidado de uma pessoa autista, sobretudo em contextos de pobreza, é um trabalho invisível e extenuante. É necessário reforçar subsídios de apoio ao cuidador informal, garantir o acesso gratuito a terapias essenciais e criar programas de descanso familiar, reduzindo o risco de burnout e de perturbações emocionais graves.
5. Promoção da saúde mental acessível e especializada
Devem ser criados núcleos de saúde mental comunitária com formação específica em autismo e pobreza. A intervenção psicológica e psicossocial deve ser integrada no sistema público de forma contínua e não episódica. A saúde mental não pode continuar a ser um luxo, sobretudo para quem vive em maior vulnerabilidade.
6. Habitação digna e acessível
A estabilidade habitacional é determinante para o bem-estar psicológico. Programas de habitação inclusiva, com apoio técnico e acompanhamento social, podem prevenir situações de sem-abrigo entre pessoas autistas adultas, fenómeno já identificado noutros países e que tende a emergir silenciosamente em Portugal.
7. Educação e sensibilização social
As políticas públicas só serão eficazes se acompanhadas de uma mudança cultural. É imperativo promover campanhas de sensibilização sobre o autismo adulto e a realidade socioeconómica das famílias. Uma sociedade informada é uma sociedade menos excludente.
A intersecção entre autismo, pobreza e saúde mental revela o grau de maturidade ética de um país. Não se trata apenas de uma questão de recursos, mas de valores. A inclusão verdadeira exige investimento, conhecimento e empatia. É tempo de reconhecer que a justiça social deve também ser sensível à diferença neurológica.
Enquanto o país se preocupa com os números, há vidas inteiras suspensas na espera por uma resposta que tarda. E, no silêncio das estatísticas, continua a ecoar a voz daquele jovem autista: “Dizem que sou invisível. Eu digo que só não querem olhar.”

Comentários