Não há evidência cientifica...
- pedrorodrigues
- 23 de set.
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Donald Grey Triplett, nasceu a 8 de setembro de 1933 em Forest, Mississipi, EUA e faleceu a 15 de junho de 2023 com 89 anos. Foi a primeira pessoa a ser diagnosticada com autismo por Leo Kanner em 1938.
Face aos critérios de dignóstico actuais de autismo tal como consta na DSM 5, Donald teria um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 1. Não há evidência médica da mãe de Donald ter feito algum tipo de medicação especifica durante a gravidez. Sendo que nunca poderia ter feito Tylenol, até porque o mesmo só passou a ser comercializado em 1955.
Tal como esta questão ontem anunciado pelo presidente dos EUA relativamente ao Tylenol (paracetamol) como causa do autismo quando tomado pelas mães no decorrer da gravidez. A FDA - US Food and Drug Administration, a agência federal dos Estados Unidos responsável por proteger a saúde pública garantindo a segurança e eficácia de medicamentos, alimentos, cosméticos, dispositivos médicos, produtos biológicos e outros produtos que emitem radiação. Este organismo publicou ontem que irá iniciar a aprovação de comprimidos de leucovorina cálcica para pacientes com deficiência cerebral de folato (CFD), uma condição neurológica que afecta o transporte de folato (uma vitamina essencial para a saúde do cérebro) para o cérebro. Observou-se que indivíduos com deficiência cerebral de folato apresentam atrasos no desenvolvimento com características autistas (e.g., dificuldades na comunicação social, processamento sensorial e comportamentos repetitivos), convulsões e problemas de movimento e coordenação.
A comunicação de ontem do presidente dos EUA, habitualmente ridicularizada por muitos atendendo à forma mais expansiva e incoerente, usualmente presente nos seus comunicados, não é assunto para brincar. Não é apenas mais uma ameaça sem sentido ou algo que possa vir a ser desmentido daqui a pouco.
Mas que não se pense que é apenas este comunicado do presidente americano que inaugura o percurso negro e desafiante que o autismo e as pessoas autistas têm tido ao longo deste tempo. Ainda hoje me procuram para saber se esta ou aquela intervenção poderá ter resultados positivos no autismo. Assim como em relação a determinado tipo de substâncias, sejam elas substâncias psicoactivas, mas também suplementos naturais, etc. A minha resposta habitual é - não há evidência cientifica que suporte essa decisão. E ainda que compreenda que a resposta possa ser parca a quem faz a pergunta, ainda assim é importante ensinar o valor e a importância da mesma. Mas ainda assim, explico e enquadro o porquê desta ou aquela terapia não ter ainda o suporte e evidência cientifica suficiente para ser proposto às pessoas autistas em segurança.
Não há evidência científica. Esta frase, repetida até à exaustão, deveria funcionar como travão contra o disparate, mas tornou-se apenas mais um detalhe incómodo que muitos preferem ignorar. As falsas causas e as falsas curas do autismo desfilam com a mesma insistência de quem vende elixires em feiras de aldeia. A cada década, a prateleira de culpas e promessas ganha novos rótulos, sempre com a mesma substância vazia.
Já vimos as mães frigorífico, acusadas de esculpir gelo no coração dos filhos. Vimos as vacinas transformarem-se em vilãs globais, enquanto surtos de sarampo regressavam com força. Vimos a quelação anunciada como purificação e a ingestão de dióxido de cloro promovida como solução química milagrosa, quando na verdade era veneno embrulhado em verniz científico. Agora vemos o paracetamol convertido em bicho-papão e o leucovorin calcium oferecido como redenção. Nada de evidência. Muito de espectáculo.
As consequências não são académicas, são humanas. Pais culpabilizados, mães envergonhadas, crianças submetidas a terapias perigosas, profissionais divididos entre o rigor e a pressão social. E, sobretudo, pessoas autistas reduzidas a enigmas, problemas ou fardos. Cada teoria falaciosa alimenta o estigma e rouba espaço àquilo que realmente poderia melhorar vidas.
É aqui que se impõe o campo propositivo. Em vez de procurar curas onde não há doença, porque não procurar compreensão onde há diferença? A ciência poderia investir mais em estudos de longo prazo sobre qualidade de vida, estratégias de autorregulação, acessibilidade no emprego e na educação. Poderíamos canalizar recursos para a formação de profissionais capazes de adaptar modelos terapêuticos às necessidades singulares de cada pessoa, em vez de insistir em programas uniformizadores.
Na escola, poderíamos substituir a lógica da integração mínima pela da inclusão plena, onde currículos flexíveis, ambientes sensoriais ajustados e respeito pela comunicação alternativa fossem regra e não exceção. Na saúde, poderíamos privilegiar abordagens centradas na autonomia e no bem-estar, em vez de perseguir a normalização forçada. Na sociedade, poderíamos deixar de falar em fardos e começar a falar em contributos, reconhecendo que a neurodiversidade é parte constitutiva da humanidade.
A ironia é que, enquanto se desperdiçam recursos em caçadas inúteis a culpados, a resposta já está ao alcance da mão: aceitar o autismo como diferença neurológica, respeitar a singularidade de cada pessoa e construir contextos que favoreçam a sua participação. Não é milagre, é apenas trabalho sério, persistente e fundamentado.
Não há evidência científica para as causas e curas que o mercado e a política gostam de proclamar. Mas há evidência científica de que as pessoas autistas beneficiam de contextos previsíveis, de rotinas respeitadas, de apoio adequado à comunicação e de ambientes livres de preconceito. Há evidência de que quando a sociedade se adapta, a vida floresce.
Talvez o passo mais revolucionário seja este: trocar a procura pela cura pela busca pela convivência. Porque não há nada a curar. Há sim tudo a transformar no modo como olhamos para a diferença.
Certo, Donald?

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