Novamente Kanner?!?
- pedrorodrigues

- há 12 minutos
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Quando realizamos uma apresentação num congresso, numa formação ou numa ação de sensibilização sobre o autismo, é frequente que um dos primeiros momentos seja a referência a Leo Kanner. Contudo, observa-se que, habitualmente, quem conduz a comunicação não se demora muito neste ponto. Do mesmo modo, as pessoas presentes na audiência, apesar do interesse que demonstram pelo tema, parecem desejar que se fale mais profundamente sobre a figura de Leo Kanner e sobre o seu trabalho. Há quase uma sensação de familiaridade generalizada com o seu nome, como se todos soubessem já tudo sobre ele.
Quando Leo Kanner publicou, em 1943, o artigo seminal intitulado Autistic Disturbances of Affective Contact, ele descreveu um conjunto homogéneo de características observadas em onze crianças atendidas no seu serviço, enfatizando desde logo o início aparentemente precoce e a qualidade qualitativamente distinta das dificuldades sociais e afectivas. Kanner salientou que as crianças por si descritas manifestavam uma ausência notória de envolvimento emocional com as figuras significativas, uma propensão para a solidão extrema, padrões restritos e repetitivos de comportamento, linguagem atípica, e uma forte necessidade de manutenção da rotina e uniformidade. Na sua formulação, estes traços não resultavam de défices de inteligência generalizados nem de uma psicoses floridas com delírios ou alucinações típicas das esquizofrenias mais tardias; pelo contrário, Kanner interpretou o quadro como uma condição inata, com início muito precoce, distinta por uma «falha no contacto afectivo» já evidente desde os primeiros anos de vida.
Importa contextualizar esta posição com o que se sabia antes de Kanner. O termo autismo foi formalmente introduzido por Bleuler em 1911 no âmbito da sua conceptualização da demência precoce e do grupo das esquizofrenias, usando a palavra para descrever um afastamento do mundo exterior e uma predominância da vida interior. Assim, historicamente, «autismo» circulava no campo da psiquiatria associada ao fenómeno da dissociação entre pensamento ou realidade partilhada e um mundo subjetivo isolado. É neste quadro conceptual geral que as observações clínicas subsequentes vieram a ser lidas.
Um ponto factual importante para a história das ideias é que Grunya Sukhareva descreveu, nos anos 1920, casos clínicos que retrospectivamente correspondem ao que hoje reconhecemos como autismo infantil. As descrições de Sukhareva antecederam a publicação de Kanner, embora tenham permanecido menos conhecidas em língua inglesa até traduções posteriores. Reconhecer Sukhareva ajuda a perceber que a delimitação entre autismo e esquizofrenia não surgiu de forma linear nem unívoca, mas antes a partir de múltiplas observações clínicas e de diferentes tradições psiquiátricas.
Voltemos à distinção prática que Kanner tentou operacionalizar em 1943. As bases para a diferenciação que ele propôs podem ser resumidas em alguns eixos centrais que constam dos seus relatos de caso e das suas discussões clínicas:
início precoce e caráter congénito do quadro, notado já nos primeiros meses e anos de vida;
ausência ou anomalia qualitativa do envolvimento afectivo, mais do que uma perda subsequente das capacidades sociais;
padrões de interesse restritos, insistência na uniformidade e comportamento repetitivo como traços nucleares;
preservação, em muitos casos, de capacidades cognitivas fragmentadas ou de competências específicas, não coerentes com o padrão de declínio difuso que Kanner associava à psicoses infantis;
ausência de fenómenos psicóticos positivos marcantes, como delírios sistematizados ou alucinações, no período inicial observado por Kanner.
Apesar destas diferenças, Kanner não pretendia, de imediato, uma ruptura radical com o legado diagnóstico que ligava autismo e esquizofrenia. No próprio texto há uma tensão histórica: ele reconhece a sobreposição sem reduzir imediatamente o autismo à esquizofrenia. A separação tornou-se mais nítida nas décadas seguintes à medida que estudos de seguimento, análises familiares e investigações sobre curso e prognóstico documentaram trajectórias distintas. Trabalhos de investigadores como Kolvin e, sobretudo, Michael Rutter contribuíram decisivamente para demarcar a autonomia do autismo enquanto entidade clínica, apontando variáveis como a idade de início, o padrão evolutivo e as diferenças no curso prognóstico como critérios discriminativos entre autismo e esquizofrenia infantil. Estas investigações ajudaram a deslocar o autismo para um quadro conceptual mais neurodesenvolvimental e diferenciado.
A própria evolução do conceito de esquizofrenia afetou esta divisão. A partir da viragem para o paradigma neurodesenvolvimental na investigação da esquizofrenia, sobretudo nas últimas três décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, emergiu a ideia de que muitos sinais sociais e cognitivos presentes em diagnósticos de esquizofrenia podem preceder o aparecimento dos sintomas psicóticos clássicos. Esta mudança de paradigma aproximou, do ponto de vista etiopatogénico, certas características do autismo e da esquizofrenia, na medida em que ambos os conjuntos de fenómenos passaram a ser pensados como manifestações de trajetórias neurobiológicas atípicas com sobreposições genéticas e de desenvolvimento cerebral. Assim, a separação clínica estabelecida historicamente não eliminou a possibilidade de partilha de mecanismos, o que complexificou a tarefa de diagnóstico diferencial.
A literatura contemporânea sobre a relação entre autismo e esquizofrenia sublinha três apreensões práticas que derivam desta história conceptual e empírica e que são relevantes para a clínica actual:
sobreposições fenotípicas e endofenotípicas, sobretudo nos domínios da cognição social e dos sintomas negativos, que exigem avaliações detalhadas e longitudinais;
a importância da história do desenvolvimento e do curso temporal, porque o padrão de aparecimento dos sinais, as regressões precoces e a emergência de sintomas psicóticos em idades posteriores orientam o raciocínio diferencial;
a necessidade de integrar dados genéticos, neuroimagiológicos e neurocognitivos quando disponíveis, pois a mera comparação sintomática em momentos pontuais pode ser insuficiente para distinguir trajectórias que partilham causas mas divergem no fenótipo clínico. Estes pontos emergem de revisões e estudos comparativos que reavaliam tanto a separação clássica quanto as áreas de convergência entre os domínios.
Na prática clínica de 2025, a herança de Kanner continua a ser valiosa precisamente porque fornece critérios observacionais detalhados sobre a qualidade do contacto afectivo e sobre padrões comportamentais centrais. Porém, os avanços subsequentes implicam que a distinção entre autismo infantil precoce e esquizofrenia infantil não pode ficar restrita a critérios puramente descriptivos de superfície. É necessário um enfoque integrador que combine: avaliação desenvolvimental rigorosa, exploração do curso temporal e das regressões, triagem para sintomas psicóticos emergentes, avaliação das comorbilidades frequentes e recurso a exames complementares sempre que a dúvida diagnóstica tenha implicações terapêuticas ou prognósticas relevantes. Estudos históricos e revisões contemporâneas sugerem que a melhor prática é manter uma atitude clínica aberta, consciente das limitações dos rótulos e orientada por dados longitudinais e por factores de risco biológicos e contextuais.
Em 1943 Kanner distinguiu o autismo infantil precoce da esquizofrenia infantil por referência ao início precoce, à natureza inata das dificuldades de contacto afectivo, aos padrões restritos de comportamento e à ausência, na fase inicial, de sintomas psicóticos positivos. Ao longo do tempo, a evolução do conceito de esquizofrenia e o desenvolvimento da psiquiatria neurodesenvolvimental aproximaram as duas áreas em termos etiológicos possíveis, ao mesmo tempo que reforçaram a necessidade de critérios diagnósticos rigorosos, de estudos longitudinais e de uma abordagem multidisciplinar para a diferenciação. Aquele balanceamento entre continuidade e distinção é hoje um dos motores da investigação e da prática clínica no cruzamento entre o autismo e as psicoses da infância e da juventude.
Ao revisitarmos a obra de Kanner, “Autistic Disturbances of Affective Contact” (1943), podemos encontrar dados que nos apontam o caminho a seguir, contribuindo para uma melhor reflexão sobre a observação clinica no presente momento.
“Since 1938, there have come to our attention a number of children whose condition differs so markedly and uniquely from anything reported so far, that each case merits — and, I hope, will eventually receive — a detailed consideration of its fascinating peculiarities.” (p. 217)
Neste parágrafo de abertura Kanner assinala que as crianças observadas apresentavam um padrão “marcado e único” que não se encaixava nas descrições então disponíveis, incluindo as de esquizofrenia infantil. O facto de enfatizar a singularidade já antecipa a sua intenção de definir uma entidade nosológica distinta, não apenas um subtipo de esquizofrenia.
“These children have come into the world with innate inability to form the usual, biologically provided affective contact with people.” (p. 250)
Este excerto é central para a tese de Kanner: a ideia de uma incapacidade inata de estabelecer o contacto afectivo habitual. A palavra «innate» (inata) implica que não se trata de um declínio ou de perda, como muitas psicoses implicavam, mas de uma perturbação presente desde o início do desenvolvimento. Aqui Kanner separa o seu conceito de autismo da esquizofrenia infantil, que se entendia habitualmente como uma regressão ou deterioração após um período normal de desenvolvimento.
“In regard to the children of this group the distinguishing trait lies in their aloneness, their self-sufficiency, their extreme insistence on sameness and the absence of warmth in their relationships with people.” (p. 236)
Este trecho descreve três traços nucleares: o isolamento/social aloneness, a autossuficiência, e a insistência extrema na uniformidade. A ausência de calor nas relações com os outros é outro ponto distintivo. Kanner sugere que essas características não são secundárias a perdas ou alterações pós-início, mas sim manifestações diretas da condição. Comparativamente, na esquizofrenia infantil se esperariam sinais de deterioração ou de envolvimento psicótico, não tanto esta “insistência na uniformidade”.
“Unlike the children in the catatonic or hebephrenic types of early childhood schizophrenia the children of this group did not show a progressive deterioration of the intellect.” (p. 239)
Aqui Kanner traça explicitamente a distinção diagnóstica: enquanto crianças com esquizofrenia infantil (tipos catatónico ou hebefrénico) apresentavam deterioração do intelecto, as crianças por ele descritas não. Isto reforça a demarcação temporal e evolutiva entre os quadros: início precoce, curso não necessariamente declinante, e padrões de desenvolvimento atípico desde cedo no autismo.
“The irresistible urge to keep things as they have been, a strong demand for sameness in the environment and daily routine, a great fear of changes, are prominent in all the children.” (p. 224)
Este excerto mostra bem a obsessiva necessidade de uniformidade e rotina que Kanner identificou como característica central. Num paralelo com a esquizofrenia infantil, não se esperaria (na conceptualização da época) uma tal insistência na invariância ambiental, mas sim manifestações psicóticas ou desorganização. Kanner coloca este traço como “prominente em todas as crianças” do seu estudo, reforçando a consistência desta marca fenotípica no autismo infantil precoce.
“These children, isolated and self-sufficient though they are, are far from indifferent to their plight; they seek out objects and activities in intense fashion and show peculiar interest‐patterns which differ from the investigative play of normal children.” (p. 228).
Neste trecho, Kanner refere que, apesar do isolamento social, as crianças não são indiferentes à própria condição ou não reagirem de forma passiva, mas desenvolvem interesses intensos por objetos ou actividades, de modo diferente das brincadeiras típicas. A relação preferencial com objectos, em vez de pessoas, constitui um indicador importante de desvio do quadro psicótico clássico da esquizofrenia infantil, onde o foco era antes sobre a ruptura da realidade comum, e não tanto sobre interesses restritos intensos desde o início.
“They do not withdraw from the world after once having taken part in it, but they never were really in it in the first place.” (p. 239)
Esta frase é talvez uma das mais citadas: Kanner sugere que estas crianças nunca entraram verdadeiramente no mundo social, ao invés de se retirarem dele depois. Esta afirmativa sublinha a distinção chave para ele: não se trata de uma regressão (como em muitas formas de esquizofrenia), mas de uma ausência de contacto desde o início. Isto reforça a ideia de “início precoce” como critério diferenciador.
Os excertos seleccionados permitem ver claramente como Kanner, em 1943, construiu os seus critérios de distinção entre o autismo infantil precoce e a esquizofrenia infantil, com base em: início precoce/desde o nascimento, curso sem deterioração intelectual primária, preferência por objectos em detrimento das relações humanas, insistência na uniformidade, ausência de contacto afectivo típico e presença de autossuficiência.
Este conjunto de características tornava viável, na sua visão, considerar o autismo como uma entidade nosológica diferente da esquizofrenia infantil, ou pelo menos como um grupo‐fenónimo cuja relação com as psicoses precisaria de investigação separada.
“There is, of course, the possibility that some of the children who now seem autistic may later become schizophrenic. However, the fundamental difference between these two groups is that in schizophrenic patients the defect in relation to people develops after at least some period of normal social relations, whereas in the autistic children the disturbance manifests itself from the beginning of life.” (p. 247)
Este é o enunciado mais explícito de Kanner sobre o diagnóstico diferencial. A referência ao “período inicial de relações sociais normais” como critério discriminativo mostra que o fator temporal (início precoce versus declínio posterior) era central. O autismo, para Kanner, não resultava de uma deterioração — era um padrão de desenvolvimento atípico desde a origem. Esta distinção entre inato e adquirido seria retomada décadas depois por Rutter e Kolvin, consolidando o diagnóstico diferencial moderno entre perturbações do espectro do autismo e esquizofrenias infantis.
“The differences between these children and those described as having childhood schizophrenia are too marked to permit the use of the same diagnostic term.” (p. 239)
Aqui, Kanner declara explicitamente a necessidade de separar as duas categorias. A ênfase na expressão “demasiado marcadas” revela que ele reconhecia a heterogeneidade clínica das psicoses infantis conhecidas e percebia o autismo como uma configuração específica de sintomas e comportamentos, não redutível ao quadro psicótico. É uma afirmação ousada para a psiquiatria de 1943, quando o termo “esquizofrenia infantil” ainda era amplamente utilizado como categoria de inclusão.
“Unlike schizophrenic patients, these children never have shown signs of hallucinations, delusions, or other psychotic features. Their behavior is governed not by the loss of contact with reality, but by a failure to form it from the beginning.” (p. 241)
Kanner introduz aqui um critério fenomenológico essencial: a ausência de sintomas psicóticos positivos. No autismo, não há ruptura com uma realidade previamente construída; há, antes, um não-envolvimento inicial. A conceptualização da esquizofrenia como uma perda de contacto e do autismo como uma falha no estabelecimento desse contacto antecipa a distinção moderna entre perturbações psicóticas e perturbações do desenvolvimento social e comunicacional.
“In the schizophrenic child, emotional disturbances are superimposed upon a previously existing normal relationship to people; in the autistic child they are primary and all-pervasive.” (p. 243)
Esta passagem consolida o raciocínio diferencial de Kanner: a natureza das perturbações emocionais. Na esquizofrenia infantil, a anormalidade surge depois de um desenvolvimento relacional normal; no autismo, é a própria base relacional que é alterada. Esta frase encerra, de forma sintética, a essência da distinção que perduraria na literatura durante décadas.
“It would be misleading to classify these children with the schizophrenic group, since they have never shown the typical course nor the psychotic breakdowns that define schizophrenia.” (p. 245)
Kanner insiste aqui no curso clínico como critério diagnóstico. Para ele, a esquizofrenia implicava uma trajetória de quebra, enquanto o autismo exibia estabilidade e ausência de surtos. Esta observação empírica foi posteriormente confirmada por seguimentos longitudinais, consolidando o autismo como uma condição do neurodesenvolvimento e não uma psicose endógena.
A leitura destes excertos mostra que Kanner já antecipava uma estrutura conceptual que, décadas depois, viria a alinhar-se com o que hoje denominamos de modelo neurodesenvolvimental. A distinção não se baseava em terminologia abstrata, mas em três pilares observacionais:
Temporalidade: início desde os primeiros meses versus declínio após desenvolvimento normal;
Fenomenologia: ausência de delírios e alucinações, substituída por défice primário de reciprocidade social;
Curso evolutivo: estabilidade e uniformidade no autismo, em contraste com flutuações e surtos na esquizofrenia.
A separação conceptual feita por Kanner teve, contudo, uma trajetória complexa. Durante as décadas de 1940 e 1950, o diagnóstico de “esquizofrenia infantil” manteve-se amplamente utilizado nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo entre clínicos de orientação psicanalítica. Foi apenas com os trabalhos de Kolvin (1971) e de Rutter (1972) que se consolidou a evidência empírica da distinção entre perturbações do espectro do autismo e esquizofrenias de início precoce, utilizando critérios longitudinais e neurodesenvolvimentais.
Além disso, as sucessivas reformulações da esquizofrenia ao longo do século XX — desde a “demência precoce” de Kraepelin até ao modelo de “distúrbio do processamento da realidade” da DSM-III em diante, acabaram por contribuir para reforçar a autonomia do autismo como categoria independente. Paradoxalmente, o recente regresso do paradigma neurodesenvolvimental na esquizofrenia trouxe novamente pontos de convergência com o autismo, lembrando que, na complexidade da mente e do cérebro, as fronteiras são porosas e evolutivas.




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