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Como é que eu me abraço? A autocompaixão no autismo


Nos últimos anos, tem-se falado cada vez mais sobre autocompaixão. Ouvimos frequentemente que devemos ser mais compassivos e compreensivos connosco, que precisamos de baixar os níveis de autocrítica e de nos tratarmos com mais gentileza.


Embora o conceito pareça recente, a ideia não é nova. Há muito que escutamos frases como “Se não gostares de ti próprio, quem gostará?” ou “Tens de cuidar de ti para que possas cuidar do outro.” O que é verdadeiramente novo é a forma como estas ideias começaram a ser aplicadas no contexto terapêutico, sobretudo nas terapias de terceira geração do modelo comportamental e cognitivo, que têm integrado a autocompaixão como uma componente central do processo de mudança.


Cultivar a autocompaixão pode ser uma abordagem complementar valiosa para apoiar a saúde mental de adultos autistas. Esta prática tem vindo a ser adotada pela própria comunidade autista como uma estratégia baseada nas forças pessoais e na valorização da autenticidade. Parte-se do entendimento de que a autocompaixão promove a resiliência, melhora a regulação emocional e favorece um sentido mais estável de identidade.


A autocompaixão pode ser entendida como a capacidade de ser gentil e compreensivo consigo próprio em momentos de fracasso, sofrimento ou perceção de inadequação (Neff, 2003a). Implica tratar-se com o mesmo cuidado e preocupação que se teria com um bom amigo. É composta por três dimensões principais: bondade para consigo mesmo, consciência da humanidade comum e atenção plena.


Quando o calor queima: o fenómeno do backdraft


Apesar dos benefícios amplamente reconhecidos da autocompaixão para a saúde e o bem-estar, muitas pessoas que iniciam estas práticas relatam reações adversas. Uma das mais comuns é o fenómeno conhecido como backdraft.


O backdraft ocorre quando, ao começar a praticar a autocompaixão, a pessoa experimenta um aumento temporário de dor emocional ou desconforto. O termo foi inspirado no comportamento do fogo: quando se abre uma porta ou janela numa sala em chamas, o oxigénio entra de repente, provocando uma explosão de calor e chamas. De forma semelhante, quando abrimos espaço interior para a bondade e o cuidado, emoções reprimidas, como vergonha, tristeza, raiva ou medo, podem emergir de forma intensa.


Estas reações podem manifestar-se através de pensamentos autocríticos, emoções desagradáveis, como vergonha ou raiva, sensações físicas de dor ou tensão e comportamentos desafiantes, como isolamento ou agressividade.


O backdraft é particularmente comum em pessoas com histórico de trauma, negligência ou padrões persistentes de autocrítica. Para algumas, a autocompaixão é uma experiência desconhecida e até ameaçadora, pois contrasta com modos habituais de lidar com a dor. Por isso, é fundamental que os clínicos estejam preparados para reconhecer e trabalhar este fenómeno, criando um ambiente seguro, validando a experiência e apoiando a regulação emocional do cliente.


Psicoeducação


O primeiro passo é explicar claramente o conceito de backdraft, usando uma linguagem simples e acessível.


  • Reestruturar o significado: Apresentar o backdraft como parte de um processo de crescimento e cura. O desconforto é temporário e indica que a pessoa está a desafiar velhos padrões de vergonha e autocrítica.

  • Fomentar uma visão de longo prazo: Encorajar o cliente a perceber que, embora doloroso, o processo conduz à transformação.

  • Associar a coragem à prática: Falar de backdraft lado a lado com conceitos positivos como coragem e confiança. Ser vulnerável é um ato de coragem, pois implica escolher o crescimento em detrimento do conforto.

  • Utilizar recursos visuais: Diagramas ou fluxogramas que mostrem como a autocompaixão pode, num primeiro momento, intensificar o desconforto antes de promover a cura.

  • Evitar a medicalização excessiva: Destacar, tal como Gilbert (2022), que muitas reações emocionais e traumáticas são respostas funcionais, não disfunções. Validar o esforço humano de crescer através da dor.


Normalização


É importante reconhecer o backdraft como uma parte normal e frequente do processo terapêutico.


  • Validar e enquadrar: Ajudar o cliente a compreender que não está a “falhar” por sentir-se pior antes de se sentir melhor.

  • Partilhar exemplos generalizados: Mostrar que muitas pessoas passam por experiências semelhantes e que é possível atravessar o desconforto e alcançar equilíbrio.

  • Destacar grupos de maior sensibilidade: Referir que pessoas autistas, com histórico de trauma ou vergonha, tendem a experienciar o backdraft com maior intensidade.


Estrutura da prática


  • Ajustar o ritmo: Começar com práticas pequenas e progressivas, antes de avançar para exercícios mais profundos.

  • Cuidar da sequência: Iniciar com técnicas calmantes e de autocuidado para consolidar a resiliência.

  • Incluir reflexão contínua: Integrar momentos regulares de partilha e análise das experiências de autocompaixão e backdraft.

  • Monitorizar o progresso: Realizar verificações regulares sobre o impacto das práticas e ajustar conforme necessário.


Foco na segurança


  • Reforçar o apoio: Garantir que o cliente sabe que não está sozinho no processo.

  • Promover o controlo: O cliente deve sentir que define o ritmo da terapia.

  • Avaliar constantemente: Se o backdraft persistir ou se tornar retraumatizante, é importante suspender temporariamente as práticas de compaixão e priorizar a estabilização emocional.


Ajustes razoáveis


  • Adaptar o ambiente: Fazer ajustes sensoriais no espaço terapêutico, como luz, som ou temperatura, para reduzir o desconforto.

  • Usar interesses especiais: Integrar, por tempo limitado, interesses do cliente para promover segurança.

  • Trabalhar de forma visual: Incentivar a expressão das emoções através do desenho ou de outras formas criativas.

  • Reservar mais tempo: Permitir que a experimentação comportamental ocorra sem pressa.

  • Adaptar o mindfulness: Utilizar práticas sensorialmente adequadas à pessoa autista.

  • Oferecer exemplos concretos: Tornar os conceitos abstratos de autocompaixão mais tangíveis e próximos da realidade do cliente.

  • Valorizar as forças autistas: Integrar as capacidades e modos de funcionamento próprios da pessoa no processo terapêutico.

  • Personalizar o método: Ajudar o cliente a aceitar a sua própria forma de sentir e processar emoções, sem necessidade de se conformar a modelos pré-definidos.

  • Facilitar a escolha: Permitir que o cliente selecione os exercícios que lhe fazem mais sentido.

  • Encerrar com cuidado: Planear o final da terapia de forma gradual, com materiais de apoio que reforcem o que foi aprendido sobre o backdraft e a autocompaixão.


A autocompaixão não é um destino, mas um caminho que se percorre lentamente. Requer curiosidade, coragem e paciência. Para muitas pessoas autistas, pode ser um modo profundamente transformador de se reencontrarem consigo próprias. Abraçar-se não é apenas um gesto simbólico; é o início de uma reconciliação interior com tudo o que fomos, somos e ainda podemos vir a ser.


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