O mundo é um palco, a vida uma peça e o espectáculo deve continuar. Mas os ensaios e as ansiedades nos bastidores mostram outra realidade por debaixo daquela maquilhagem. Tal como Jaques em Shakespeare, também vou vendo na clinica mais "Jaques", homens e mulheres com Perturbação do Espectro do Autismo que se dizem "cansados" das peças e das personagens. E tal como Jaques na peça real, as pessoas falam de como tudo isto vai sendo diferente ao longo das "sete idades do homem". Sai de cena quem não é de cena!
Quando acompanhamos pessoas adultas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro (PEA) a variedade de situações observadas e vividas na relação e no processo terapêutico é bastante variado e rico. No entanto, também há um conjunto de coisas que vão sendo habitualmente repetidas. Um pouco como algumas peças de teatro que vão continuamente sendo exibidas. Mas neste caso é por serem de excelente qualidade. Enquanto que no caso do espectro do autismo o mesmo já não se pode dizer.
As características comportamentais observadas no espectro do autismo já são grandemente conhecidas para as voltar a repetir. São uma gama ampla e com um impacto que vai de moderado a grave. Ao longo da intervenção com as crianças, jovens e adultos com este diagnóstico é possível compreender que algumas das intervenções ou pelo menos parte delas parecem ir ao encontro de tentar que as pessoas do espectro se aproximem de um comportamento neurotípico, isto é, de alguém que não tem autismo.
Seja na capacitação das pessoas ao nível das competências pessoais e sociais até ao desenvolvimento e aprendizagem de determinados comportamentos isolados mais ou menos complexos que devem ser postos em prática em diversos cenários e situações sociais. A situação é sensível até porque se a pessoa com PEA apresenta dificuldades na interacção e comunicação social, em realizar ou manter relações de amizade, entre outras. Partimos do principio que será necessário que a intervenção possa precisamente dar uma resposta a essas mesmas dificuldades.
Contudo, não é incomum na clinica ouvirmos crianças, jovens e adultos a referirem que não vêm nenhum mal ou nada de errado em determinados comportamentos que alguém diz que é preciso de mudar. Sejam situações mais ou menos óbvias e/ou necessárias para tornar a interacção social mais funcional. No caso dos adultos, ouvirmos muito frequentemente um relato que se estende no tempo de como tentaram, umas vezes por si próprios e outros com a ajuda de terapeutas, terem comportamentos semelhantes aos seus pares neurotípicos, isto é, sem autismo. E que ao fim de algum tempo sentem-se cansados e também em algumas situações não compreendidos nas suas necessidades e forma de ser.
Adicionalmente ao desejo dos jovens e à conceptualização do terapeuta, adicionamos aquilo que os pais vão referindo como objectivo mas também a escola. Ou seja, são vários actores que parecem apontar para a criança, jovem ou adultos com PEA para que mude ou se procure adaptar. E este sentimento é muitas vezes causador de sofrimento por sentirem que não são o que sentem ser, frustração quando sentem não conseguir alcançar essa meta e claramente incompreensão ao longo da vida.
É preciso ter em conta e é sabido da investigação que tem vindo a ser realizada, de que as pessoas do espectro do autismo que apresentam maior evidência de camuflagem social. Ou seja, capacidade de aprendizagem de um reportório social para realizar nestas mesmas situações. São também as pessoas que apresentam maior nível de sofrimento psicológico ao nível dos sintomas de depressão e ansiedade. Ou seja, este acto de camuflagem, ou também possível de perceber como um acto de fingir quem não são lhes esteja a causar maior sofrimento do que propriamente apenas uma adaptação à situação.
É certo que todos nós nos vamos procurando adaptar ao longo do desenvolvimento e nos mais variados contextos. Faz parte da vida, é expectavel. E também é certo que se há uma dificuldade no espectro do autismo é a flexibilização e capacidade de se adaptar a novos contextos e situações. Mas ainda assim, pensamos ser possível que ambos, neurotipicos e neurodivergentes, sem e com autismo, procurem uma aproximação, compreensão e respeito mútuo pelas suas formas singulares de todos sermos.
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