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Foto do escritorpedrorodrigues

Level up

O meu filho não larga o telemóvel, dizia a mãe com alguma insistência. O que eu tenho não é um telemóvel, é um smartphone, ouvia-se o Luís (nome fictício) dizer com uma tonalidade pedante. Nós não sabemos o que é que ele faz durante aquelas horas todas no quarto em frente ao computador. Está sempre a jogar!, dizia o pai. Eu não estou sempre em frente ao PC. Muitas vezes estou na consola e além disso não estou sempre a jogar, continuava o Luís com o mesmo tom. Além disso vocês nunca quiseram saber o que é que eu estou a fazer, concluiu.


Este pequeno excerto de conversa pode resumir parte daquilo que vai acontecendo em certo número de famílias. E para quem pensa que o fenómeno dos comportamentos de adição aos videojogos pela internet está a tornar-se numa epidemia, isso não representa a realidade. Aquilo que a experiência clínica e os estudos realizados em vários países, nomeadamente em contexto europeu e em Portugal especificamente, demostram que a percentagem de jogadores com características compatíveis com uma perturbação de adição aos videojogos pela internet mas também offline, tal como consta na ICD-11 (Organização Mundial de Saúde), é de 09% a 1,3%. Ainda que possamos encontrar cerca de 9% a 11% de jogadores com comportamentos de risco e que no caso de não haver qualquer tipo de intervenção ou mudança de comportamentos podem evoluir para algo mais comprometedor.


O Luís do diálogo inicial tem 24 anos e um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo desde os 8 anos. Tem sido acompanhado durante alguns períodos ao longo destes anos. Neste momento está sem fazer formação ou trabalhar há cerca de dois anos. E ultimamente, o seu comportamento relacionado com os videojogos pela internet tem-se intensificado, o que levou os pais novamente a solicitar ajuda. Os pais reportam que esta presença junto dos ecrãs sempre foi uma constante. E que ao longo destes anos têm conhecido outras famílias com filhos com o mesmo diagnóstico e que têm também ouvido relatos semelhantes. Facto que já tem questionado muitas pessoas, pais, profissionais de saúde e outros, de se haverá alguma questão que justifique esta aparente maior proximidade entre as pessoas autistas e os ecrãs de uma maneira geral. Em jeito de spolier avanço que os poucos estudos que se têm debruçado sobre esta aparente relação, têm demonstrado que não existe uma diferença significativa entre as pessoas autistas e não autistas no acesso e utilização dos ecrãs. Isto, ainda que do ponto de vista da observação clínica se vá tendo uma outra perspetiva mais micro sobre o comportamento das pessoas autistas nestes contextos. Estas informação não são contraditórias. Muito pelo contrário, complementam-se. E além disso é fundamental poder compreender a funcionalidade que os ecrãs têm na vida da própria pessoa, seja do espectro do autismo ou não.


Não percebo a questão do meu comportamento com os videojogos ser um problema, diz Luís. Se quiserem ouvir falar de problemas deviam falar dos anos todos em que fui vitima de bullying na escola, isso sim, acrescenta. Durante alguns anos na minha infância pensei que não sabia fazer nada de jeito. As dificuldades que fui tendo na escola, não conseguir ter amigos ou com quem brincar, esquecer-me de mais de metade das coisas que os meus pais e irmãos em pediam para fazer. É uma lista infindável, refere Luís. Mas quando comecei a jogar depressa percebi que aquilo era algo em que eu era bom. Além disso, era um mundo onde as pessoas me reconheciam pelo que eu conseguia fazer, conclui. Por que é que eu não haveria de continuar a jogar?, pergunta-me. E se me vai dizer que a forma como eu estou a jogar me está a prejudicar, pense duas vezes, disse-o de uma forma mais confrontativa. A minha vida tem sido um inferno, excepto quando estou a jogar, compreende. Além de tudo o que já lhe disse, o meu sono é terrível. Cada vez que me vou deitar sinto que não consigo desligar os pensamentos. E não, não é só sobre os jogos que estou a pensar, acrescenta. Perder a possibilidade de jogar é como me sentir completamente desligado da vida e de querer viver, diz. Eu não tenho mais nada, percebe?, conclui.


A Perturbação do Espectro do Autismo é sabido que é caracterizada por dificuldades persistentes na interação social e na comunicação, além de padrões restritivos, fixos e repetitivos de pensamento, comportamento e interesses.


Também se sabe que as pessoas autistas são mais propensos do que indivíduos com um desenvolvimento normativo a serem diagnosticados com outras condições médicas, como problemas comportamentais, alimentação, sintomas gastrointestinais, epilepsia, problemas de sono e perturbação de hiperactividade e défice de atenção, bem como inúmeras condições psiquiátricas.


Ainda que com menos incidência, mas são cada vez mais as chamadas de atenção para os problemas com comportamentos de adição com substâncias (e.g., álcool, haxixe, heroína, etc.) nesta população. E tem sido procurado conceptualizar e compreender estes comportamentos que parecem ter uma caracterização de impulsividade. E na verdade, vários estudos têm demonstrado que nas pessoas autistas e com comorbilidade com PHDA apresentam uma maior propensão para activar comportamentos de auto-regulação e inibitórios. E este padrão tem sido observado em outros comportamentos e áreas que incluem os jogos de azar, compras, uso de internet e videojogos e comportamentos sexuais.


De acordo com os critérios propostos nos manuais de diagnóstico, existem nove sintomas de adição aos videojogos pela internet e offline, cinco dos quais devem estar presentes ao longo de um período de 12 meses para justificar um diagnóstico: preocupação com videojogos, sintomas de abstinência, aumento da tolerância, necessidade de jogar em níveis crescentes para sentir satisfeito, tentativas mal sucedidas de parar ou controlar o jogo, perda de interesse em hobbies como resultado do jogo, uso intensivo contínuo de jogos da Internet apesar dos problemas, enganar os outros quanto à quantidade de tempo gasto a jogar, uso de jogos para melhorar o humor negativo e levar à perda do emprego, relacionamento ou outra oportunidade importante por causa do comportamento de jogar.


É compreensível que determinados comportamentos possam ter um maior impacto na vida da pessoa e nas dinâmicas familiares. O comportamento de jogar é um deles. Não pela actividade em si, mas pela forma como é realizado. E sublinho que mais de 75% dos jogadores o faz de uma forma saudável e adaptada. No entanto tem-se verificado, seja nas pessoas com um desenvolvimento tipicamente normativo, mas também no espectro do autismo. Que existe todo um conjunto de outras características que potenciam esta aproximação e servem como factor de manutenção. Tem sido verificado que nas pessoas com um desenvolvimento tipicamente normativo e que apresentam problemas no comportamento de jogar, que há uma maior prevalência de sintomatologia depressiva e ansiogénica. Ou seja, parece que este comportamento de jogar está a servir como mecanismo de regular o humor. Além de aproximar as pessoas daquilo que é a realidade humana, ainda que a partir de um contexto online. No espectro do autismo também ocorre com uma prevalência significativa sintomatologia depressiva e ansiogénica. Além de outras características próprias da própria condição. E que o contexto online parece ser facilitador desta aproximação e interacção com os outros. Apesar de tudo, será importante desde que a pessoa começa a contactar com os ecrãs, normalmente desde criança, que o mesmo possa ser feito de uma forma supervisionada e acompanhada. É fundamental poder deixar a criança explorar sem dúvida, mas poder garantir que há um acompanhamento de um mediador que vai traduzindo e regulando as coisas que vão acontecendo. Além de poder ir mantendo o interesse e a importância da realização de outras actividades outdoor.


O Luís do diálogo inicial precisa de ser ajudado, assim como os seus pais a como lidar consigo e com a sua situação de vida. Mas também é importante enquadrar o percurso de vida do Luís e de todo um conjunto de acontecimentos de vida vitais e com um grande impacto na sua vida e nas escolhas de vida actuais. Mais do que pensar exclusivamente na regulação do seu comportamento em relação ao jogar. É importante pensar em outros aspectos funcionais igualmente importantes e que o ajudem a (re)ingressar na vida. É verdade que o tempo que o Luís está a fazer de utilização dos jogos e dos ecrãs de uma maneira geral tem um impacto real na sua vida, nomeadamente no tempo disponível para outras actividades. Contundo, será fundamental que isso possa ser enquadrado na sua pessoa e não somente observado como um comportamento de recusa da sua parte. É esta a visão que pensamos no NICO (Núcleo de Intervenção no Comportamento Online) do PIN. E assim todos podemos subir de nível (Level Up).


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