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Idadismo +

"Amélia dos olhos doces

Quem dera que fosses apenas mulher

Amélia dos olhos doces

Se ao menos tivesses direito a viver"


Carlos Mendes, in Amélia dos olhos doces


A outra metade do rosto da Amélia (nome fictício) não sabemos como é. Podemos adivinhar, mas não sabemos. Assim como não sabemos de grande parte da vida de muitas pessoas das quais pensamos saber. Podemos criar músicas sobre elas, tais como o Joaquim Pessoa que escreveu o poema Amélia dos olhos doces cantado por Carlos Mendes. Mas ainda assim não sabemos como é a sua vida. Este texto também é uma aproximação àquilo que será viver a velhice no espectro. E como será viver a vida num período já por si tão pautado de estigma e de perdas, quando se passou a vida mergulhado neles?


Envelhecer no Espectro: Uma Vida de Silêncio Prolongado


A sociedade costuma falar do envelhecimento como perda. Perda de vigor, de funções, de produtividade. Em muitos contextos, o idoso é lido como alguém que já “deu o que tinha a dar”, cuja utilidade social está em declínio, e cuja voz começa a ser ignorada — quando não ridicularizada. Esta visão reducionista do envelhecer torna-se ainda mais cruel quando aplicada a quem, ao longo de toda a vida, já foi repetidamente deixado à margem. Para uma pessoa autista, envelhecer não é apenas uma questão de tempo. É, muitas vezes, o acentuar de uma invisibilidade antiga.


O idadismo e a interseção com o autismo


O termo idadismo refere-se à discriminação com base na idade, sobretudo na velhice. É um preconceito insidioso, socialmente aceite, que se traduz em infantilização, silenciamento, piadas normalizadas, exclusão das decisões e acesso limitado a cuidados centrados na pessoa.


Para pessoas autistas, que já enfrentam o capacitismo, a estigmatização do diferente e a medicalização da sua forma de ser, o envelhecimento pode significar uma sobreposição de exclusões. A exclusão pela diferença soma-se agora à exclusão pela idade. Muitos profissionais de saúde olham para um idoso autista e veem apenas “um idoso difícil”, “um velho teimoso”, “uma demência que começa a despontar”. Raros são os que perguntam: como será viver 70 anos com um mundo que nunca nos reconheceu?


“Agora que tenho 66, as pessoas acham normal que eu não goste de sair de casa, que fique calado, que ande mais devagar. Mas quando era jovem, isso era um problema, uma ‘disfunção social’. A velhice deu-me uma máscara de aceitação, mas também tirou-me o resto da escuta.”
— Manuel, diagnóstico de autismo aos 59 anos

Quando o diagnóstico chega tarde (ou nunca chega)


A maioria das pessoas autistas seniores de hoje viveu a maior parte da vida sem saber que era autista. Foram rotulados como excêntricos, frios, ansiosos, depressivos, inadaptados. Muitos passaram por longos períodos de sofrimento mental sem uma linguagem que os ajudasse a compreender-se. Chegam à velhice com uma história de solidão camuflada, resistência calada e memórias de incompreensão.


Para estas pessoas, o envelhecimento pode ser simultaneamente um alívio e uma ferida. Alívio, porque já não precisam de fingir tanto, já não têm de trabalhar, de sorrir por obrigação, de se adaptar continuamente. Ferida, porque se olham ao espelho e não reconhecem quem viveram — sentem que nunca foram vistos de verdade.


“Descobri que era autista aos 63. Deu-me paz. Mas também raiva. Raiva por tudo o que poderia ter sido diferente se alguém tivesse percebido.”
— Clara, professora reformada


A família como espelho e desafio


O idadismo também se reflete na dinâmica familiar. Muitos filhos adultos olham para os pais autistas como “problemáticos”, “esquisitos”, “teimosos”. A diferença, que nunca foi bem compreendida, é agora reforçada pela ideia de que “estão velhos demais para mudar”. O idoso autista, por seu lado, sente-se invadido, tratado como incapaz, ou simplesmente ignorado nas decisões sobre a sua própria vida.


A falta de diagnóstico ou a incompreensão do mesmo levam muitas famílias a interpretar necessidades legítimas como birras, manias, obstinação. E assim, a relação degrada-se. O espaço pessoal, as rotinas sensoriais, os ritmos próprios — tudo é invadido por um cuidado bem-intencionado, mas profundamente desrespeitador da autonomia da pessoa.


“Os meus filhos decidiram que eu devia mudar de casa. Dizem que é melhor para mim. Mas nunca me perguntaram se eu queria. Acham que não percebo o que se passa, mas eu percebo tudo — só que me custa explicar.”
— Jorge, 72 anos

A mente que não envelhece como se espera


O envelhecimento neuropsicológico em pessoas autistas não segue necessariamente os mesmos padrões das populações neurotípicas. Algumas funções cognitivas podem manter-se estáveis por mais tempo; outras, como a flexibilidade cognitiva ou a memória de trabalho, podem mostrar sinais de vulnerabilidade. Mas a grande questão está na interpretação errada desses sinais.


Em muitos contextos clínicos, quando um idoso apresenta comportamentos repetitivos, resistência a mudanças, silêncio ou expressão emocional incomum, o primeiro pensamento é: demência. E o erro começa aí. Porque muitas dessas expressões já existiam há décadas — apenas foram (novamente) mal compreendidas.


“Disseram à minha filha que eu tinha Alzheimer. Mas eu lembro-me de tudo. Só não quero falar com estranhos. Só não gosto que me toquem. Só preciso das minhas coisas no mesmo lugar.”
— Rosa, 69 anos

Pensar o fim da vida: medo, autonomia e autenticidade


Como pensa uma pessoa autista o fim da sua vida? A resposta varia — mas há temas comuns: o medo de perder o controlo, de ser institucionalizado, de não ser respeitado nos seus limites, de ser tratado como um corpo, e não como uma pessoa.


Muitos autistas seniores temem não poder comunicar quando precisarem. Outros receiam que os seus modos de expressão sejam mal interpretados por equipas de saúde que não sabem “ler” o espectro. Há quem se angustie com a ideia de morrer num lugar barulhento, com luzes fortes, sem os seus objetos, sem previsibilidade.


“Gostava que me deixassem ter um quarto com pouca luz. Que me explicassem as coisas antes de me mexerem. Que falassem comigo como se eu fosse gente, mesmo que eu não responda.”
— Teresa, 78 anos, autista não verbal

Uma nova forma de envelhecer?


Apesar das dificuldades, há também autistas seniores que descobrem, com o tempo, um espaço de liberdade tardia. Quando o desempenho social já não é exigido, quando a vida abranda, quando finalmente se sentem autorizados a ser como são.


“Sempre fui forçado a fazer parte. Agora, aos 70, já ninguém espera isso de mim. E curiosamente, é agora que começo a sentir vontade de me aproximar dos outros. À minha maneira.”
— Henrique, artista visual reformado

Conclusão: escutar quem sempre foi silenciado


Envelhecer no espectro é um acto de resistência. É continuar a viver num mundo que nem sempre reconheceu a sua existência, mas onde se resistiu com subtileza, com criatividade e com força silenciosa. Se queremos combater o idadismo nas pessoas autistas, precisamos antes de tudo de escutá-las — sem pressa, sem preconceito, e sem a tentação de corrigir.


Precisamos de garantir que o envelhecimento seja vivido com dignidade, autonomia, autenticidade e reconhecimento, e que a última etapa da vida não seja mais um lugar de invisibilidade, mas de visibilidade plena — como sempre deveria ter sido.


 
 
 

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