Esqueci-me do meu autismo
- pedrorodrigues
- 21 de set.
- 3 min de leitura
Hoje, 21 de setembro, o mundo recorda a doença de Alzheimer. É um dia que dá visibilidade ao esquecimento, mas também nos convida a pensar sobre a memória, a identidade e a forma como estas se entrelaçam com outras condições neurológicas. Uma dessas condições é o autismo, presença constante ao longo da vida, mas ainda tão pouco explorada no envelhecimento. Muitos poderão perguntar-se se o autismo está inevitavelmente ligado a outras doenças, se todas as pessoas autistas terão maior risco de declínio cognitivo ou demência. As dúvidas são legítimas, porque a ciência continua a oferecer respostas incompletas.
O que sabemos até agora é que o autismo é uma condição do neurodesenvolvimento que não se limita à infância. Persiste ao longo da vida, com diferentes intensidades e expressões, e o diagnóstico pode chegar tardiamente, muitas vezes apenas na idade adulta. Esse diagnóstico tardio pode oferecer compreensão, mas também abre um luto pelo tempo passado em desencontro. Foi assim com Helena, que recebeu o diagnóstico de autismo aos cinquenta e três anos. Recorda-se do silêncio pesado no consultório. Durante décadas vivera em desconforto, sem entender porque se sentia deslocada em festas, porque se perdia em ambientes ruidosos, porque a rotina era tão vital como o ar que respirava. Quando ouviu a palavra autismo, sentiu finalmente uma chave que abria o mapa escondido do seu percurso.
Mas o tempo avançou. Aos sessenta e oito anos, começaram os primeiros esquecimentos. Numa manhã, saiu de casa em direção ao supermercado, caminho que fazia há anos sempre à mesma hora, pela mesma rua. No meio do trajeto perdeu-se, incapaz de reconhecer as esquinas familiares. Quando a filha a encontrou, confusa, Helena chorou. Se me esqueço da rotina, esqueço-me de mim, disse entre soluços. A investigação mostra que distinguir entre sinais de declínio cognitivo e traços autísticos é um desafio clínico. A perda de rotina pode parecer um indício claro de demência, mas também pode estar mascarada por características já presentes no espectro. Reconhecer estas sobreposições exige formação especializada e metodologias de avaliação rigorosas, sem as quais se corre o risco de diagnósticos tardios e cuidados insuficientes.
Aos setenta e dois anos, Helena recebeu o diagnóstico de doença de Alzheimer. Uma manhã, enquanto observava a luz a desfazer-se pela janela, murmurou à filha: esqueci-me do meu autismo. A frase expôs uma ferida funda, porque já não reconhecia as estratégias que durante décadas lhe serviram de bússola. Já não encontrava refúgio nos padrões repetidos, já não se lembrava da ordem que lhe oferecia conforto. O Alzheimer corroeu não só a memória factual, mas também a consciência da sua própria condição. O que significa perder a lembrança daquilo que sempre estruturou a existência? Como se cuida de alguém cuja identidade se construiu na compreensão tardia do autismo, mas que agora já não tem acesso a essa memória?
Na vida diária, a filha de Helena aprendeu a recriar pequenas ilhas de estabilidade. No fim da tarde, coloca sempre a mesma música calma. Serve-lhe chá de camomila na chávena azul que ela própria escolhera há muitos anos. Coloca-lhe nos ombros a manta de textura suave que ainda hoje lhe arranca um suspiro sereno. Mesmo quando Helena já não reconhece a lógica destas repetições, o corpo reconhece. A serenidade regressa, como se a memória estivesse guardada na pele e não apenas no pensamento.
Este cuidado lembra-nos que pessoas autistas que desenvolvem demência ou doença de Alzheimer precisarão de apoio especializado, talvez mais complexo do que o de quem vive apenas com uma das condições. Para os profissionais de saúde, significa aprender a distinguir sinais, adaptar estratégias de comunicação e criar ambientes que reduzam o stress e a sobrecarga sensorial. Para as famílias, significa receber orientação prática, acesso a recursos e acompanhamento que reconheça a singularidade da experiência.
A ciência ainda não nos oferece certezas quanto ao risco acrescido de demência em pessoas autistas. Alguns estudos apontam para essa possibilidade, outros negam-na, outros ainda sugerem que o autismo poderia ser protetor. A diversidade de resultados espelha a própria heterogeneidade do espectro, onde cada pessoa apresenta uma combinação única de sintomas, intensidades e trajetórias. Mas mesmo que não exista risco aumentado, a elevada prevalência do autismo na população exige que especialistas em autismo, envelhecimento e Alzheimer unam esforços para desenhar respostas específicas, respeitando as necessidades desta população.
O Dia da Doença de Alzheimer recorda-nos que a memória pode desvanecer-se, mas a dignidade não. No caso das pessoas autistas, lembra-nos que o autismo é presença contínua, do início ao fim da vida. Helena já não se lembra do seu autismo, mas a filha lembra-se. E nesse cuidado diário, feito de música, chá e manta, resiste a memória mais profunda: a de que cada vida merece ser reconhecida na sua singularidade, mesmo quando as palavras se apagam.

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