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E se um cérebro incomoda muita gente, dois cérebros ...

Confesso que fiz uso do meu cérebro durante uns minutos para decidir se haveria de publicar ou não este texto. Isto porque comparar cérebro nunca é uma tarefa fácil, além das pessoas nem sempre ficarem contentes sobre aquilo que se diz. Basta ver quando se procura falar do cérebro masculino versus feminino. Mas o mesmo se passa quando falamos da aparente sobreposição entre a Perturbação do Espectro do Autismo e a Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção.


Existem várias perspectivas de olhar para o comportamento humano e se umas serão mais inexactas e sujeitas ao enviesamento humano dos próprias clinicos, existem outras que apesar mais mais especificas e detalhadas na análise podem deixar de parte aspectos fundamentais da expressão comportamental. Além do facto da DSM continuar a arrumar os diagnósticos em categorias não ajuda nada, até porque não corresponde àquilo que é a realidade do comportamento humano. Ainda que na DSM 5 já exista a possibilidade de diagnosticar PHDA em comorbilidade com PEA, quando na DSM IV TR ainda não era possível.


Já assisti a número suficiente de reuniões clinicas onde se dirimiu a questão. E provavelmente vários de vocês já estiveram em congressos ou outros eventos onde aconteceu semelhante discussão cientifica. Se procurarmos sair da ideia angustiante para vários de nós que esta discussão irá significar no futuro que um ou outro diagnóstico irá desaparecer em prole do outro, talvez assim consigamos pensar melhor. E como tal, também aqui neste texto a minha pretensão não é afirmar que não existe PHDA e que na verdade é uma outra das muitas heterogeneidades do espectro do autismo. Assim como também não irei passar a dizer que várias das características do espectro do autismo, desde as questões relacionadas com a interacção social e aspectos sensoriais são sintomas melhores explicados pela PHDA. Esta polarização nunca nos ajudou e precisamos de sair dela. Até porque a probabilidade é que tudo isto seja melhor expresso por um continuum.


A Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, designada PHDA, e a Perturbação do Espectro do Autismo, designada PEA, afetam uma proporção relevante de jovens e criam desafios persistentes no contexto educativo, nas relações sociais e na qualidade de vida. Os critérios diagnósticos descrevem a PHDA como persistente, caracterizada por perturbações significativas da atenção e ou da hiperatividade em múltiplos contextos. A PEA manifesta se através de dificuldades na reciprocidade social, acompanhadas por comportamentos e interesses restritos e repetitivos. Apesar desta separação conceptual, a prática clínica tem revelado uma sobreposição expressiva entre ambas.


Estas perturbações surgem frequentemente em simultâneo e apresentam uma heterogeneidade extensa. Esta complexidade relaciona se com fatores de risco genéticos partilhados e com padrões convergentes de organização e funcionamento das redes cerebrais.


As avaliações diagnósticas continuam a depender sobretudo da observação clínica e de relatos de informadores. Estes métodos são subjetivos, exigem tempo e recursos e revelam dificuldades em diferenciar de forma consistente as duas perturbações ou em explicar a sua comorbilidade. Esta dependência de análises manuais limita o alcance das amostras incluídas em estudos e não permite captar a diversidade expressiva presente na vida real. Daí a necessidade crescente de marcadores objetivos, escaláveis e quantificáveis, derivados do comportamento naturalista, capazes de clarificar a interação complexa entre sintomas de PEA e de PHDA tal como emergem no quotidiano.


A comunicação humana requer competências linguísticas estruturais e pragmáticas. A linguagem estrutural inclui vocabulário e sintaxe, enquanto a linguagem pragmática se refere ao uso funcional da linguagem em contexto social. Embora as dificuldades de comunicação social sejam características nucleares da PEA, não constituem um elemento diagnóstico central da PHDA. Mesmo assim, estudos baseados em relatos de informadores demonstram uma sobreposição significativa, já que ambos os grupos podem apresentar dificuldades tanto estruturais como pragmáticas.


Outro elemento crucial da comunicação é a capacidade de assumir perspectivas, frequentemente referida como Teoria da Mente. A inferência dos estados mentais e emocionais dos outros é fundamental para compreender e construir discurso e narrativa. Estas dificuldades têm sido associadas à PEA, mas a investigação sobre capacidades sociocognitivas tem avançado de forma paralela e independente para PEA e para PHDA. O processamento de linguagem natural mostrou padrões linguísticos distintos na PEA, como discurso repetitivo e narrativas atípicas, enquanto estudos separados identificaram maior desorganização narrativa na PHDA. No entanto, as investigações baseadas em métodos automatizados têm recorrido a amostras pequenas, o que limita a identificação de perfis linguísticos e sociocognitivos robustos e replicáveis.


O reduzido tamanho das amostras e a separação artificial entre grupos impede a definição clara de domínios partilhados e de domínios distintos. Torna se essencial explorar a linguagem, tanto estrutural como pragmática, em conjunto com competências sociocognitivas de ordem superior como memória, compreensão, construção narrativa e tomada de perspectiva, de modo a construir modelos mais precisos dos padrões de comprometimento associáveis à PHDA e à PEA.


A prosódia, frequentemente considerada um elemento subtis mas revelador da comunicação social, tem sido descrita como atípica na PEA. Revisões sistemáticas recentes destacam a tendência para um tom médio mais elevado e uma variabilidade acrescida do tom. Contudo, os resultados relativos a intensidade vocal, velocidade da fala e qualidade da voz permanecem inconsistentes, situação atribuível ao tamanho reduzido das amostras, à diversidade metodológica e à heterogeneidade clínica. A influência da PHDA comórbida, que também pode envolver alterações prosódicas, é pouco compreendida. Embora métodos automatizados tenham mostrado potencial na identificação de padrões vocais associados à PEA, a sua aplicação limitada não permite isolar uma assinatura vocal estável e específica.


O comportamento motor constitui outro domínio relevante. A investigação na PEA descreveu uma diversidade ampla de comportamentos motores atípicos. Em contraste, a análise objetiva do movimento na PHDA tem sido escassa, centrando se sobretudo na atividade global medida por actigrafia. Até agora, não existem estudos que utilizem as mesmas medidas de movimento para comparar diretamente PHDA e PEA, integrando simultaneamente a elevada taxa de comorbilidade entre ambas.


O desenvolvimento da linguagem, da fala e da coordenação motora evolui rapidamente ao longo da infância e adolescência, influenciando a expressão sintomatológica. A hiperatividade associada à PHDA tende a diminuir com a idade, enquanto a desatenção se mantém. A coocorrência de sintomas de PEA e PHDA frequentemente emerge na infância média e atinge um pico na adolescência, período crítico de mudança social e cognitiva que permanece pouco estudado. Sem modelar cuidadosamente idade, sexo e nível cognitivo, muitos marcadores comportamentais podem refletir apenas diferenças demográficas ou trajetórias típicas de desenvolvimento.


A convergência entre evidência clínica, neuroimagem e genética sugere uma sobreposição significativa entre autismo e PHDA. O reconhecimento crescente de comorbilidades entre condições neuropsiquiátricas tem incentivado abordagens transdiagnósticas centradas em dimensões sintomáticas e nos mecanismos biológicos subjacentes. A PEA e a PHDA, apesar de conceptualizadas como categorias distintas, partilham características clínicas, variância genética e atipicidades estruturais e funcionais. No entanto, continua incerto em que medida os perfis sintomáticos coocorrentes correspondem a bases biológicas comuns.


A presença de sintomas de PHDA em crianças com autismo é frequente e agrava o comprometimento funcional. Da mesma forma, traços autistas são observados em muitos indivíduos com diagnóstico primário de PHDA. Esta interpenetração de sintomas dificulta diagnósticos precisos e compromete a individualização da intervenção. Assim, abordagens dimensionais transdiagnósticas tornam se essenciais para compreender as bases neurobiológicas das diferenças individuais em ambos os domínios sintomáticos.


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