Comorbilidades no autismo
- pedrorodrigues

- há 5 horas
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As perturbações do espetro do autismo são condições do neurodesenvolvimento caracterizadas por dificuldades persistentes na comunicação e interação social, padrões repetitivos de comportamento e interesses restritos. O modelo dimensional introduzido no DSM 5 reforça a noção de um continuum de manifestações clínicas, níveis de apoio e perfis funcionais, substituindo a antiga categoria das perturbações pervasivas do desenvolvimento.
A expressão clínica é profundamente heterogénea. Esta heterogeneidade, associada à elevada taxa de comorbilidades médicas e psiquiátricas, torna o diagnóstico complexo em todas as idades. A presença de múltiplas comorbilidades é um dos principais fatores de atraso diagnóstico, tanto na infância como na idade adulta, influenciando o funcionamento global, a adaptação social e o risco de morbilidade, incluindo comportamento suicidário.
O reconhecimento rigoroso de comorbilidades e de diagnósticos diferenciais é, por isso, essencial para intervenções eficazes e para promover qualidade de vida.
1. Critérios de Diagnóstico e Níveis de Apoio
O DSM 5 TR exige défices persistentes na comunicação e interação social em diversos contextos e a presença de pelo menos dois tipos de comportamentos restritos e repetitivos. Em idade pediátrica, é necessária evidência clara de alterações em três domínios sociais e de comportamentos repetitivos diversificados. Os níveis de apoio variam entre ligeiro, moderado e elevado, refletindo a intensidade das necessidades adaptativas.
A avaliação deve ter em conta:
grande variabilidade de perfis cognitivos, sensoriais e comunicativos
risco de confundir características nucleares do espetro com sinais de outras perturbações
importância de instrumentos padronizados administrados por profissionais treinados
2. Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção
A coocorrência entre espetro do autismo e perturbação de hiperatividade e défice de atenção é muito frequente. Esta combinação associa-se a:
maior impacto no funcionamento executivo
dificuldades acrescidas de flexibilidade cognitiva, planeamento e inibição de resposta
maior vulnerabilidade emocional e adaptativa
A avaliação deve integrar entrevista clínica, escalas validadas e observação direta.
O tratamento combina:
intervenções comportamentais estruturadas
psicoeducação parental
fármacos como metilfenidato, atomoxetina ou guanfacina, com adaptação cuidadosa das doses dado o perfil de sensibilidade típico no espetro
Intervenções precoces mostram melhorias substanciais no comportamento adaptativo.
3. Perturbações de Ansiedade
A ansiedade é das comorbilidades mais frequentes no espetro, em todas as idades. As formas mais comuns incluem ansiedade social, ansiedade generalizada, fobias específicas e pânico ou agorafobia. As apresentações podem ser atípicas, por exemplo:
fobias invulgares
intolerância à mudança
medos intensos relacionados com estímulos sensoriais ou novidade
A avaliação deve ser multimétodo e multinformador, integrando auto relato sempre que possível. Estão a surgir instrumentos específicos para adultos autistas.
O tratamento centra-se em:
terapia cognitivo comportamental adaptada ao perfil cognitivo e sensorial
estratégias explícitas de regulação emocional
exposição graduada
práticas de mindfulness
fármacos como inibidores seletivos ou duplos da recaptação de monoaminas, com monitorização próxima
4. Perturbações da Personalidade
Traços ou diagnósticos de perturbações da personalidade, sobretudo dos grupos A e C, podem coexistir com o espetro. A sobreposição com traços autistas exige avaliação experiente.
Exemplos de áreas de confusão:
perfeccionismo e rigidez próprios de traços obsessivo compulsivos de personalidade
evitamento social que pode resultar tanto de ansiedade como de diferenças na comunicação social
A psicoterapia é o tratamento de primeira linha. A farmacoterapia dirige-se apenas a sintomas específicos, como impulsividade, agressividade ou ansiedade, com evidência limitada e necessidade de cautela.
5. Comportamentos Repetitivos e Perturbação Obsessivo Compulsiva
Comportamentos repetitivos no espetro diferem das obsessões e compulsões da perturbação obsessivo compulsiva.
Diferenças principais:
no autismo, os comportamentos nem sempre são egodistónicos e podem ser reguladores
na perturbação obsessivo compulsiva, as obsessões são intrusivas e geradoras de angústia, levando a compulsões para alívio emocional
A avaliação deve clarificar motivação, sofrimento interno e impacto funcional.
O tratamento inclui estratégias comportamentais, exposição adaptada e, quando necessário, fármacos como fluoxetina ou fluvoxamina.
6. Distúrbios do Sono
As perturbações do sono são muito prevalentes e persistentes. Observam-se:
latência prolongada
fragmentação do sono
alterações do sono REM
associação com ritmos circadianos atípicos, variações de melatonina e fatores ambientais
A abordagem integra:
higiene do sono estruturada
intervenções comportamentais
melatonina em crianças e adolescentes
polissonografia em casos complexos
tratamento das comorbilidades médicas associadas
7. Perturbações do Humor
Depressão major e perturbação bipolar ocorrem com frequência aumentada no espetro.
Na depressão podem surgir:
irritabilidade
intensificação de estereotipias
retraimento social
perda de competências em perfis com comunicação limitada
O tratamento inclui:
terapia cognitivo comportamental adaptada
terapia metacognitiva comportamental
farmacoterapia quando clinicamente indicado, incluindo uso criterioso de antipsicóticos atípicos, lítio ou divalproato
8. Perturbações de Tiques e Síndrome de Tourette
Tiques motores e vocais podem coexistir com estereotipias autistas. A distinção exige análise da fenomenologia, urgência premonitória e padrão temporal.
O tratamento de primeira linha é comportamental, incluindo reversão de hábito e exposição. O aripiprazol é uma opção farmacológica frequente quando necessário.
9. Perturbações da Alimentação e Comportamento Alimentar
No espetro são comuns padrões alimentares seletivos ligados a processamento sensorial, rotinas e previsibilidade. Diferenciam-se de perturbações alimentares clássicas porque o objetivo não é o controlo ponderal.
A intervenção envolve:
avaliação sensorial
treino parental
exposição gradativa a novos alimentos
coordenação com contexto escolar
tratamento de problemas gastrointestinais associados
A farmacoterapia tem papel restrito.
10. Avaliação Transversal e Instrumentos
A avaliação deve ser integrada, incluindo:
entrevista clínica detalhada
observação direta
instrumentos específicos como ADI, ADOS ou medidas adaptadas de psicopatologia
questionários especializados em domínios como alimentação, comportamentos repetitivos, ansiedade e sono
A seleção deve considerar idade, linguagem, contexto e finalidade clínica.
11. Princípios de Tratamento
Um plano eficaz deve seguir:
abordagem centrada na pessoa, com objetivos funcionais realistas
intervenções psicológicas adaptadas ao perfil sensorial e comunicacional
farmacoterapia dirigida a sintomas alvo, com doses baixas e monitorização frequente
coordenação interdisciplinar entre clínica, escola, família e serviços sociais
adaptações ambientais que reduzam carga sensorial e social desnecessária
vigilância ativa do risco de suicídio e implementação de planos de segurança
Conclusão
As comorbilidades psiquiátricas no espetro do autismo são comuns, multifacetadas e clinicamente relevantes. A sobreposição de sinais entre traços autistas e outras perturbações dificulta o diagnóstico e pode atrasar intervenções essenciais. Uma avaliação multimétodo, associada à psicoterapia adaptada e ao uso cauteloso de fármacos, melhora funcionamento, bem-estar e autonomia ao longo do ciclo de vida.
Investir em instrumentos de avaliação específicos e estratégias terapêuticas inovadoras continuará a ser fundamental para responder adequadamente à diversidade de perfis do espetro.
Nota: As referências a fármacos no decorrer do texto não pretende substituir a decisão médica. As mesmas estão de acordo com as referências cientificas actuais.



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