Como tricotar um diagnóstico?
- pedrorodrigues

- há 2 dias
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O diagnóstico nasce de gestos pacientes, quase artesanais. Recolhe fragmentos de história, escuta os ecos da infância, observa os contornos do comportamento e encosta instrumentos validados ao pulsar íntimo de cada pessoa. Mas ultrapassa sempre o procedimento clínico, porque se transforma numa lente nova que permite ver o Mundo, os Outros e a si próprio com outra nitidez. O diagnóstico não fecha uma porta. Abre um caminho que talvez já lá estivesse, encoberto pela poeira dos dias.
Recordo uma fotografia breve, dessas que viajam pelas redes como folhas levadas pelo vento. Mostrava um novelo de lã multicolor, supostamente um cérebro. O novelo estava cheio de nós e enredos internos, talvez para representar pensamentos infinitos, talvez para sugerir o peso do sofrimento psíquico. A imagem continuava com um gesto de desenredar. Daquele caos saía um fio único, de uma só cor, que se ligava a uma lâmpada como se a clareza viesse dessa redução ao mínimo. Fiquei a contemplar aquela simplicidade durante alguns minutos. E percebi que nunca seremos esse fio solitário. Somos o novelo inteiro, com todas as suas cores e variações de luz. Somos emoções que se entrelaçam, sensações que se tocam, ideias que às vezes se confundem, sem que isso signifique doença. E percebi também como, no autismo no adulto, esta metáfora se repete muitas vezes. Há fios que se cruzam com comorbilidades, há nós formados por diagnósticos errados, há enredos que só parecem autismo e afinal são outra coisa. Tudo isto nos leva à arte difícil do diagnóstico diferencial.
A história do autismo começou muito antes de Kanner, mas foi a sua capacidade de organizar o que outros apenas pressentiam que permitiu reconhecer a solidão autística, os interesses restritos e a dificuldade na mudança. A sua descrição despretensiosa resistiu ao tempo e aos equívocos que se seguiram. Durante anos, confundiram o autismo com esquizofrenia infantil e culparam os pais por falhas imaginadas. Só nos anos setenta surgiram as evidências que consolidaram o conceito, mostrando que havia um enraizamento cerebral, uma herança genética poderosa e uma resposta melhor a métodos estruturados do que a vagas tentativas de psicoterapia. A partir daí, o autismo tornou-se palavra oficial, ganhou lugar nos manuais e ampliou-se até ao que hoje chamamos Perturbação do Espectro do Autismo.
Mas a clareza nunca é total. O espectro é amplo, mutável, profundamente humano. E mesmo com instrumentos mais fiáveis e formação especializada, continuam a existir adultos que viveram décadas sem nome para aquilo que os acompanhava. Muitos cresceram antes de existir consciência dos fenótipos subtis, sobretudo nas mulheres, cuja presença no espectro foi subestimada durante demasiado tempo. Muitas chegam ao diagnóstico dois anos mais tarde que os homens, mesmo quando mostram a mesma intensidade de características. E enquanto alguns falam em epidemia, o que existe é apenas uma multiplicação de olhos atentos. Ainda assim permanece uma pergunta inquieta. Onde estão os adultos autistas que não conhecemos, quando se estimam milhões só no continente europeu?
Na idade adulta o autismo não se revela como nos livros de infância. As relações mudam, os interesses transformam-se em refúgio, as rotinas tornam-se ferramentas de sobrevivência quotidiana. Os critérios concebidos para crianças tornam-se mais difíceis de aplicar. A pessoa adulta carrega já camadas de história, adaptações silenciosas, estratégias de camuflagem. Muitas mulheres aprenderam a imitar gestos sociais até se diluírem neles. Muitos homens foram classificados como resistentes ao tratamento porque se tratava de um tratamento para um diagnóstico errado. E os serviços que acolhem estes adultos, habituados a lidar com perturbações do humor, ansiedade ou psicose, muitas vezes não reconhecem aquilo que nasce de um funcionamento neurológico diferente.
A pergunta atravessa tudo como um fio de prata. Será o autismo diagnosticado na infância o mesmo que o diagnosticado na idade adulta? Talvez não. Os percursos diferem, os resultados divergem, as necessidades multiplicam-se. Alguns sintomas tornam-se mais suaves com o tempo, outros mantêm a sua sombra, sobretudo o bem-estar e a autoestima, tão difíceis de medir. A ciência ainda não sabe responder. Mas pressente que existe algo mais, algo por compreender na profundidade desse novelo humano.
Dos instrumentos que utilizamos, uns perdem precisão na idade adulta, como o ADI R, preso à memória da infância. Outros, como o módulo quatro do ADOS, acompanham melhor a respiração da vida adulta, captando desejos, relações, ocupações, fragilidades e forças.
Depois do diagnóstico, muitos adultos recebem pouco ou nada. Caminham sozinhos com uma palavra nova que muda tudo e ao mesmo tempo não muda o suficiente. Procuram apoio ocupacional, orientação para a vida, oportunidades de pertença. Procuram, sobretudo, alguém que saiba interpretar o tecido complexo que são. A investigação avança, mas ainda falta muito para que a sociedade aprenda a escutar estes silêncios.
O diagnóstico deveria ser mais do que um selo. Deveria ser um mapa que revela caminhos, uma ferramenta que ilumina sem simplificar, uma forma de reconhecer todas as cores de um novelo que nunca será reduzido a um único fio. No fundo, diagnosticar é um acto profundamente humano. Exige olhar para a pessoa como quem olha para um tecido antigo, cheio de texturas, falhas, brilhos e memórias. Exige compreender que cada vida tem o seu próprio modo de tricotar sentido.



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