Muitos de vocês ainda estão lembrados deste episódio quando iam ao Pediatra e vos era pedido para abrir a boca, colocar a língua de fora e dizer AAAAAAA, certo? E quantas vezes queriam dizer que estava a magoar, incomodar ou outra coisa qualquer e não conseguiam? Estão todos sintonizados nesta experiência e no que ela pode provocar, certo? Algo semelhante acontece em relação ao autismo. É verdade, tal como a nossa garganta pode ficar inflamada e precisa de ser observada. Também o autismo precisa de ser (re)analisado uma e outra vez ao longo do tempo.
Desde a implementação do autismo como condição diagnosticável na década de 1980, o modelo médico continuou a dominar a forma como entendemos o autismo. Até aqui nada de mais, seja em relação ao autismo e todo um conjunto de outras condições clinicas. Ainda que ao longo destes anos, as próprias pessoas com esta condição, os seus familiares, e alguns profissionais de saúde, foram exigindo um outro modelo para conceptualizar esta condição. Um modelo igualmente mais complexo tal qual a própria condição. E abrangente o suficiente para abarcar o todo das pessoas autistas. E apesar de fundamental, o modelo médico deixou de ser suficiente para pensar o autismo.
Mais recentemente, mais precisamente a partir da década de 90, tem havido um aumento na compreensão do autismo através do modelo de neurodiversidade e das experiências vividas das próprias pessoas autistas. No entanto, há muitas vezes um desalinhamento entre o modelo médico e as preferências da comunidade autista. Em particular, há um desalinhamentos em torno da linguagem que usamos na sociedade para discutir o autismo e as pessoas autistas. Sendo que os desalinhamentos linguísticos são particularmente importantes, com a linguagem a desempenhar um papel importante na transmissão de entendimentos de um grupo dentro da sociedade.
Eu não gosto que me chamem de cego! Eu sou invisual. Eu não quero que me voltes a chamar de deficiente, mas sim de pessoa com deficiência! Eu não sou Esquizofrénico! Sou uma pessoa com Esquizofrenia! Eu não sou autista, mas sim uma pessoa com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo! Eu não sou nada disso. Eu sou o Luís (nome fictício).
Estas e outras frases já foram ouvidas muitas vezes e em situações diferentes. Desde as situações em que são usadas para ofender propositadamente a outra pessoa. Mas também quando a palavra em si é usada para caracterizar uma outra pessoa ou situação, mas ainda assim é referida de uma forma negativa. Ou então quando a pessoa não sabe simplesmente como dizer e ao invés de perguntar à outra pessoa, diz aquilo que pensa ser adequado. E as pessoas autistas, elas próprias também não são consensuais em relação à designação a usar. Sendo que uns preferem autista, outros pessoa autista, mas também pessoa com autismo ou com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. E outros que preferem nem sequer ouvir a palavra. E ainda há quem diga que é Asperger e não Autista. E quase logo de seguida se ouve alguém dizer que Asperger nem pensar porque está associado ao nome de uma pessoa que colaborou com o sistema Nazi. E dentro da comunidade autista encontramos activistas, alguns inclusive que não têm este diagnóstico e são pais de pessoas autistas, e também referem que deve ser usada esta ou outra designação. E claro está que os próprios profissionais de saúde também eles têm uma palavra a dizer, e fazem-no. Seja na sua comunicação no dia a dia da prática clinica, mas também nos congressos e outros trabalhos científicos. Mas independentemente de tudo isto, três coisas, pelo menos, me parecem certo, não há consenso e parece haver espaço para várias possibilidades, sendo para tal necessário haver um diálogo entre todos; a linguagem tem um impacto grande na forma de comunicarmos e representarmos o autismo; e existe verdadeiramente um impacto sentido e percebido na forma como nos dirigimos ao autismo e à pessoa autista.
Os meios de comunicação são uma ferramenta poderosa que tem sido usada nos últimos tempos para tipificar e informar a opinião pública sobre o autismo. Exemplos como o sucesso de bilheteira Rainman de 1988, altura em que o autismo tinha entrado recentemente na DSM, tem sido visto como um plano para futuras representações do autismo. Ainda que muito criticado ao longo deste tempo todo até então. Mas porquê? Será que não há uma pessoa autista que possa ser semelhante à personagem autista representada no filme? Certamente que haverá, seja na grande parte das características apresentadas ou pelo menos em algumas delas. Mas será que a personagem em questão representa toda a comunidade autista? A resposta é dupla. Não, não representa toda a comunidade autista. Mas o autismo é ele tão heterogéneo que parece ser impossível ter uma personagem que a represente. Se pensarmos, cerca de 2/3 da população autista apresenta associado um défice cognitivo. E dentro deste grupo vamos encontrar um número igualmente representativo de autistas não verbais. E claro que temos as pessoas com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 1, que em tempos foram também designadas de autismo de alto funcionamento, ou Síndrome de Asperger, etc. Esta própria questão dos diferentes níveis referidos na DSM 5 face ao diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo relança dúvidas em algumas pessoas. Pensando estas que os níveis se referem a diferentes autismos. Quando na verdade estes níveis reflectem o nível de suporte necessário para intervir com a pessoa.
Como se verifica, é fundamental continuar a reflectir sobre tudo isto. E sem dúvida que teremos todos a perder enquanto perdurar uma narrativa monolítica do autismo nos meios de comunicação, e que no presente momento com as redes sociais se tornaram ainda mais, mas que ameaçam alienar as pessoas autistas.
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