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Como é que te consegues rir?

-Como é que te consegues rir? perguntava Laura (nome fictício), enquanto Susana (nome ficiticio), sua amiga saia do consultório médico a rir despregada.

-Como assim? questionava Susana ainda engasgada com o riso.

-Como é que apesar de tudo ainda consegues rir? voltava Laura a questionar.

-Apesar de tudo!? Tudo, o quê? perguntava Susana conseguindo conter o riso.

-Não disseste que o médico te falou que tens um diagnóstico!

-Sim, disse. Precisamente por isso é que me rio. refere Susana voltando novamente a sorrir.

-Mas o que é que ele te disse?

-Que tenho um diagnóstico de autismo!

-Como é que ainda assim consegues rir?

-Isso é aquela coisa das pessoas autistas que sorriem sem qualquer sentido que lemos no outro dia na internet? questionava Laura.

-Ai Laura, deixa-me sentar que já não me aguento! dizia Susana agarrada à barriga a rir.


Este diálogo entre a Laura e a Susana surgiu de um convite que me fizeram esta semana para em setembro poder ir assistir ao lançamento de um livro de uma jovem autista que celebra o humor e não só. Dei comigo a pensar no porquê daqueles pensamentos ficarem mais tempo presentes em mim. E percebi que apesar de ser uma pessoa que está nestes anos todos a trabalhar com pessoas autistas também me deixo contaminar com esta ideia de que o autismo é apenas critérios e características de diagnóstico, comorbilidades e terapias, etc. Obviamente que estes enviesamentos têm um conjunto variado de contributos. O facto de estar mais frequentemente imerso naquilo que são as queixas e dificuldades sentidas pelas pessoas autistas e que procuram ajuda também por isso. O facto destas mesmas dificuldades não deixarem muito espaço para que outras características suas, sejam inatas ou aprendidas, possam emergir, nomeadamente o bem estar, a alegria, sentido de humor e o riso, o simples riso. E pensar que isso também é algo que não é diferente da vida de qualquer um de nós. Principalmente quando temos a vida mais inundada de preocupações e outras coisas semelhantes. Talvez este texto, o diálogo da Laura e da Susana sirva o propósito de purgar esse enviesamento e exorcizar alguns destes aspectos e largar uma risada despregada como a da Susana ao ponto de me sentar no chão agarrado à barriga como forma de celebrar o humor e a beleza da vida, a minha e a de todas as Susana's, Catarina's, Júlio's, Fernando's, de todas elas e eles com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas principalmente de todas as suas vidas e da normalidade singular da vida de cada um.


A Alegria Inesperada: Sobre o Riso e a Normalidade nas Vidas Autistas


Há uma ideia persistente e fatigada, nascida do olhar enviesado de quem vê de fora, de que as pessoas autistas vivem em mundos silenciosos, cerrados, tão densamente envoltos em lógica ou em contenção emocional que nelas não caberia o riso, esse gesto fugidio da alma, essa curva súbita que o rosto faz quando a vida, por um instante, se alivia de si mesma.


Mas o riso está lá. Às vezes discreto como um brilho no olhar, outras vezes solto, redondo, vibrante. E não porque contradiga o autismo, como se o desmentisse, mas porque o inclui. Porque faz parte.


As pessoas autistas também riem. E não apenas riem, mas riem das mesmas coisas de que qualquer outro riria: de uma ironia bem construída, de um mal-entendido que se transforma em anedota, de uma cena absurda na rua, de uma piada partilhada, de uma lembrança peculiar. Riem de si mesmas com elegância e consciência, porque reconhecem padrões na sua própria forma de ser e pensar que, quando observados com distância e ternura, são deliciosamente cómicos.


Há em muitas pessoas autistas uma criatividade que desarma e surpreende, feita de associações improváveis, de conexões inesperadas entre ideias, sons ou imagens, que tanto podem gerar arte como provocar gargalhadas. A sensibilidade estética que frequentemente se manifesta no autismo, aquela que capta detalhes ínfimos e os transforma em mundos — pode também dar origem ao humor mais fino, mais inteligente, mais exacto. Porque rir é também reconhecer padrões e depois subvertê-los.


E, no entanto, é preciso dizer isto de modo claro: não há nenhuma contradição entre ser autista e ser bem-disposto. Não há qualquer incongruência em ser autista e ter sentido de humor. O diagnóstico não anula a alegria. Antes, pode ajudar a explicá-la, a mapear de onde ela vem, como se manifesta, que trilhos segue para se expressar.


O que frequentemente falha é o olhar social. O imaginário colectivo ainda se demora em representações redutoras, patologizantes ou puramente funcionais da experiência autista. Quando se fala de autismo, fala-se quase sempre daquilo que falta, do que é diferente, do que requer adaptação ou suporte. Fala-se menos do que é partilhado, familiar, quotidiano. E talvez seja por isso que o riso de uma pessoa autista surpreenda tanto, porque o mundo não o espera.


Mas o riso está presente. Às vezes surge depois de uma análise meticulosa de uma situação absurda, que só mais tarde faz sentido como engraçada. Outras vezes vem da literalidade das palavras, que se tornam cómicas quando lidas com a lente lógica que tantas pessoas autistas aplicam ao mundo. Há quem se ria das suas rotinas exageradas, quem ache graça às suas obsessões temáticas, quem brinque com os próprios modos de reagir aos estímulos sensoriais. E nesse riso há uma aceitação plena da identidade, não como caricatura, mas como reconhecimento íntimo, como autoconsciência luminosa.


Nas vidas autistas cabe tudo: o silêncio e o som, a ordem e o caos, a dor e o prazer, o trabalho e o descanso, a tristeza e a alegria. E também o riso. O simples riso. O inesperado. O profundo. O partilhado.


É por isso que, quando uma pessoa autista se ri, talvez não seja apenas por estar feliz. Talvez seja por ter encontrado um lugar onde a sua forma de estar no mundo, com todas as suas nuances e complexidades, encontrou um eco, uma resposta, uma liberdade. Talvez o riso não seja um intervalo no autismo, mas uma expressão dele.


Afinal, o riso é uma linguagem. E as pessoas autistas também falam essa língua, à sua maneira, no seu ritmo, com o seu brilho. E quando o fazem, não estão a sair de si. Estão a habitar-se. A celebrar-se. A viver.

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