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Casados de fresco

A primeira vez que Júlio (nome fictício) ouviu esta expressão tinha oito anos. Pensava que todas as pessoas casavam no inverno e por isso a designação ao fresco. E como seria se as pessoas casassem no verão? Chamar-se-iam "casados de quente"? Júlio tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) desde os quatro anos. Na altura ainda se chamava Síndrome de Asperger. Agora mudou de nome. E o Júlio também mudou um pouco algumas coisas. Há quatro anos foi pedido em namoro por Arlete (nome fictício). Ela é quem sempre tomou a iniciativa. Ainda hoje o é. Excepto numa única coisa. Há um ano Júlio pediu Arlete em casamento. Arlete não conseguiu dizer nada durante três dias. Não é exagero. Arlete além de ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo tem igualmente uma Perturbação de Ansiedade. Não contava com a espontaneidade do Júlio e foi completamente apanhada de surpresa. Vão casar-se hoje!

Júlio sempre ouviu dizer que quando se chega aos vinte e cinco anos se começa a pensar em casar. Na altura com oito anos não percebia o porquê de apenas a partir daquela idade, vinte e cinco anos. E porque não antes? E o que seria começar a pensar em casar? Júlio sabia o que havia de pensar em relação a insectos. Conhecia tudo o que havia para saber. Mais tarde mudou para animais de maior porte mas a intensidade manteve-se. Formou-se em Biologia Marinha. Que mais havia de ser pensou quando terminou o curso. Não havia nada mais por que se interessasse. Isto apesar de a partir de certa altura passar a ouvir que nunca haveria de terminar o curso e até mesmo entrar na Universidade. Ouviu muito ao longo dos anos essa frase - "Nunca haverá de lá chegar!". Fosse na Escola, apesar de ser um aluno inteligente. "Saiu ao pai.", diz sempre a mãe. Isso e o "feitiozinho teimoso" como costuma carinhosamente referir. Júlio começou a suspeitar que o seu pai também teria um diagnóstico igual ao seu mas nunca teve coragem de o dizer. Em contrapartida o pai sempre o compreendera muito bem e sabia como dar-lhe a volta. Mas não era apenas nos assuntos da Escola que Júlio ouvia a dita frase. Também nas amizades, principalmente aqui era onde o Júlio se sentia mais desconfortável. E um pouco mais tarde passaram também a dizer "Que a continuar assim também ninguém te haverá de querer para casar!". Júlio lembra-se de ter ficado três dias de cama. Literalmente não saiu de lá, não comeu e até há quem diga que não dormiu. Após esse tempo, levantou-se da cama e nunca mais quis saber de falar de raparigas, namoros ou o que quer que pudesse fazer-lhe pensar nisso. Até há quadro anos atrás quando conheceu Arlete.


Arlete, Ar como lhe chamavam, era quatro anos mais velha que Júlio. Contrariamente a Júlio só foi diagnosticada mais tardiamente. Tinha vinte anos e foi logo após ter entrado na Universidade. Entrou para Técnica Laboratorial, isto apesar de ser uma aluna excelente. Bem capaz de ter entrado em Medicina. Mas a escola sempre foi um lugar muito difícil para a Arlete. Primeiro não percebia porque é que faziam as coisas de determinada forma. Principalmente a maneira como as outras raparigas brincavam. Primeiro que Arlete compreendesse já a brincadeira tinha terminado. Não que ela não compreendesse. Porque ela rapidamente compreendia tudo. A questão tinha a ver com o facto das coisas não lhe fazerem sentido. Desde o chamarem nomes de pessoas às bonecas ao passarem a partir de determinada altura andarem aos pares de mãos dadas e a falar de rapazes. Arlete não sabia o que havia de falar e muito menos de rapazes. Preferia antes brincar com eles. Até porque tudo lhe parecia mais fácil no universo deles. Parecia alguém completamente diferente junto aos rapazes. Uma vez atreveram-se-lhe a chamar Maria Rapaz. Uma vez porque a Arlete decidiu as coisas rapidamente com o Tomás no recreio da escola e nunca mais ninguém se atreveu a tal. Arlete não era violenta. Mas havia momentos em que as coisas pareciam perder completamente o controlo. Fosse com os barulhos, principalmente estes, que lhe foram causando tanta dificuldade ao longo da Escola. Não é por acaso que lhe chamam de Ar desde cedo. Ar de cabeça no ar. Arlete fica tempo infindável a olhar para qualquer outro sitio, desde que isso lhe servisse o propósito de a fazer desligar do ruído que acontecia na sala de aula.


Arlete conheceu o Júlio na Universidade. Nunca mais esqueceu aquele dia. Foi na semana académica. Arlete já era finalista. Júlio tinha acabado de entrar. Disseram-lhe que devia ir às praxes. Seria uma forma de se poder integrar com os outros. Júlio encheu-se de coragem e um Victan e lá foi. Assim que entrou no espaço da Universidade sentiu logo um grupo de cinco ou seis trajados de volta dele. A confusão era tal que não percebeu o que ia acontecer. Se iria ser praxado, assaltado, ou o que quer que fosse. Uns gritavam enquanto os outros rodavam à volta deles repetindo uma espécie qualquer de ritual. Arlete ao olhar para Júlio que ainda não tinha conhecido na altura sentiu que havia ali qualquer coisa que ela compreendia muito bem na cara de horror que o Júlio apresentava. Não eram nenhuma sensação normal de tonturas, apesar de o parecer. Os olhos pareciam ter visto uma qualquer figura mitológica horrenda. A postura corporal estranhamente colocada e as mãos dobradas para dentro de uma forma que não eram esperadas de estar. Arlete não sabia que nome se dava a tudo aquilo mas sabia o que era sentir tudo aquilo. Como é que Arlete aguentava aquilo tudo então? Arlete tinha percebido que quando ingeria uma certa quantidade de bebidas alcoólicas as coisas pareciam-lhe diferentes. Mas um diferente bom, um daqueles que lhe agradava e a quem estava com ela também. Foi imediatamente ter em socorro da besta. Era o nome que se dava a quem tinha acabado de entrar. Agarrou-lhe em ambas as mãos e com uma voz firme mandou calar os trajados que o rodeavam e com uma voz completamente doce falou ao Júlio calmamente. Júlio nem se atreveu a levantar a cabeça. Mas ainda bem. Não era permitido tal ousadia. "Melhor para mim!", pensava ele. Arlete não sabia o que havia de fazer para safar "a besta" daquela situação. Mas tinha de fazer algo pois os outros não deixariam sair ele dali impune. "Ajoelha-te besta", disse-lhe docemente Arlete. Tanto quanto dizer uma coisa daquelas pudesse ser feito com uma voz doce. Mas o certo é que teve efeito. "Ajoelha-te e declara-te a mim!". Júlio, apenas vislumbrou um pouco dos pés de Arlete e dos seus sapatos. Não foi preciso mais. Um dos interesses restritos de Júlio era pés e sapatos. E se havia coisa que Júlio sabia era de pés e sapatos.


De joelho esquerdo no chão Júlio começou a fazer uma declaração a Arlete. Primeiro foi Arlete que ficou completamente petrificada com as primeiras palavras de Júlio. E a seguir os que por ali estavam de roda deles e os mais não sei quantos que se juntaram a eles. Houve até quem filmasse aquela Epopeia. Arlete nunca tinha ouvido tal emoção. O seu corpo parecia flutuar ao som de cada estrofe. Mal sabia Arlete que Júlio tinha uma paixão por Cervantes e tinha lido sete vezes D. Quixote. Primeiro em Espanhol e depois mais tarde em duas outras línguas. Arlete nunca mais pensou em outra coisa ou em outro alguém. Passado não muito tempo Arlete pediu-lhe namoro e Júlio aceitou sem pestanejar, tique que na altura parecia não o querer largar. E quatro anos depois já sabem que Júlio pediu Arlete em casamento e ela esteve três dias sem conseguir falar.


Hoje vão casar, Júlio e Arlete. Algum tempo depois de começarem a namorar e Arlete ter sabido do diagnóstico do Júlio procurou mais informação sobre o assunto. Não tardou muito para que fosse procurar um psicólogo que lhe fez um diagnóstico. O psicólogo também não pestanejou em relação a isso. Quando a viu entrar no gabinete estava bem vestida. Demasiado até para quem vinha a uma consulta de psicologia para ser avaliada. O olhar de Arlete apesar de ser directo para o psicólogo parecia atravessa-lo. Pouco tempo depois de ele lhe ter perguntado se tinha alguma dificuldade com a visão Arlete contou-lhe que era a sua forma de não chamar a atenção sobre si. Tinha aprendido a olhar para as pessoas. Os filmes, as séries, as novelas e tudo o mais que houvesse na televisão e na internet a Arlete usava para aprender o que fazer e como fazer. Mas fazia-o sempre igual. Menos com Júlio. Além de ter aprendido o ter de olhar para os outros descreveu um conjunto infindável de outras coisas que aprendeu a fazer do ponto de vista social. E acrescentou ao psicólogo que não sentia propriamente prazer em o fazer mas sentia de alguma maneira que os outros pareciam apreciar isso. E ela fazia. Tornava-se mais simples. E com isso a vida de Arlete foi sendo de alguma forma mais simples nesse aspecto, não em tantos outros.


Estavam nervosos, o Júlio e a Arlete. Quem não estaria? Iam casar hoje! Levavam consigo duas malas, uma cada um. Não literalmente, até porque ambas as suas famílias fizeram questão que o casamento fosse assinalado com pompa e circunstância. As malas, a de cada um, simboliza tudo aquilo que cada um de si carrega para dentro daquela relação. Até então, mas também dali para a frente. Júlio dizia a Arlete sorrindo - "Se o padre disser até que a morte vos separe fica certa que nunca me haverei de separar de ti!". Arlete sabia porque Júlio sorria e sorriam os dois. Havia muito que acontecia assim com eles. Sabiam porque ambos sorriam. Estavam nervosos porque pensavam em todo um conjunto de questões que normalmente as pessoas pensam quando passam a viver juntos. Desde como irão fazer as coisas no dia-a-dia, até decidirem em que lado da cama é que cada um irá dormir. E como é que as limpezas de casa vão ser feitas. Até porque ambos têm um conjunto de idiossincrasias em relação a muitas coisas. Mas se há coisa que o Júlio e Arlete aprenderam um com o outro foi a sorrirem. E hoje vão casar!

 
 
 

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