Cartografia do desejo autista: Corpo, silêncio e singularidade
- pedrorodrigues
- há 3 dias
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O desejo autista não se curva ao enredo dos gestos previsíveis nem aos rituais do olhar codificado, ele emerge, denso e inteiro, nas frestas do silêncio, no arrepio táctil de um som ou na simetria luminosa de um toque. Não é ausência, é outra gramática: pulsão que não pede decifração, erotismo que não mendiga permissão. O desejo autista não é frágil nem imaturo, é um cosmos sensorial onde o corpo e o pensamento dançam fora do compasso normativo, mas em plena harmonia interna. É aí, nesse lugar de diferença radical, que o desejo se torna mais puro: quando não imita, não esconde, não se traduz, apenas é.
As camadas do desejo na pessoa autista: entre o silêncio, o corpo e a mente
O desejo, enquanto fenómeno humano, não é uma linha única nem um impulso homogéneo. É antes um emaranhado de camadas, biológicas, cognitivas, afectivas, sociais e sensoriais, que se expressam de formas plurais e nem sempre visíveis. Na pessoa autista, estas camadas adquirem uma textura própria, muitas vezes tornada invisível por uma cultura que espera do desejo uma performance estereotipada, normatizada, legível segundo códigos neurotípicos.
Explorar o desejo na pessoa autista é desmistificar a ideia de ausência ou patologia. É abrir espaço para outras formas de pulsão, de prazer, de presença e de vínculo. É, sobretudo, reconhecer a legitimidade de uma sexualidade que pode ser vivida com intensidade, com reserva ou com uma lógica interna que escapa às expectativas normativas.
A origem do desejo: biologia, interacção e simbolização
Tal como em qualquer ser humano, a origem do desejo na pessoa autista é multifactorial. Existe uma base biológica, hormonal, neurológica, sensorial, que permite a activação da pulsão. A adolescência é, para muitos, um momento de confronto com mudanças corporais, excitações inexplicadas, desconfortos físicos e uma nova linguagem interior, muitas vezes desorganizada ou sem tradução imediata.
Mas o desejo não emerge apenas da biologia. É também moldado por experiências precoces, pelo tipo de interacções vividas e pela forma como o mundo simbólico, afectivo, relacional, erótico, é construído. Muitas pessoas autistas têm um percurso marcado pela dificuldade de aceder aos códigos sociais normativos numa cultura predominantemente neurotipica do flirt, da sedução ou da reciprocidade romântica. A ausência de referência externa inteligível pode adiar ou silenciar a consciência do desejo como relação com o outro.
Contudo, isso não equivale a ausência de desejo. Pelo contrário, este pode estar intensamente presente, mas sem os canais típicos de simbolização. Pode ser um desejo não nomeado, sentido de forma visceral ou imaginada, vivido no corpo, nos pensamentos, nos interesses fixos, ou nos afectos silenciosos. A origem do desejo autista, portanto, é a mesma que em qualquer pessoa: a necessidade de contacto, de prazer, de encontro, de reconhecimento. Mas a sua emergência segue uma gramática própria.
O desejo é fonte de prazer?
Sim, mas não exclusivamente. O desejo na pessoa autista pode ser fonte de prazer, mas também de angústia, de confusão, de sobrecarga sensorial ou emocional. Desejar, para algumas pessoas autistas, implica sair da zona de previsibilidade e conforto. A relação com o corpo do outro pode ser intensa, mas invasiva. O toque pode ser simultaneamente excitante e desorganizador. O olhar pode ser desejado, mas evitado. O som da voz pode ser estímulo afectivo ou ruído insuportável.
Assim, o prazer pode vir do desejo, mas também de outras fontes menos convencionais: do padrão repetido, da simetria do movimento, do som da respiração, do cheiro específico de alguém, do ritual partilhado, do silêncio em conjunto, do tacto de um tecido, do ritmo de um balanço. A fonte do prazer pode ser somática, sensorial, intelectual, emocional, ou todas ao mesmo tempo. Em alguns casos, pode não haver desejo por outro corpo, mas sim prazer na introspecção, no mundo imaginado, na criação mental de um universo seguro e rico.
O corpo, o pensamento e a expressão do desejo
A pessoa autista pode expressar o desejo no corpo, no pensamento ou em ambos, mas nem sempre de forma reconhecível para os outros. Em alguns casos, o corpo manifesta-se com estereotipias, com tensão muscular, com gestos repetitivos que não são apenas motores, mas formas de regular o excesso de excitação interna. Noutras situações, o corpo fica imóvel, hipercontrolado, como se o desejo estivesse retido na mente, sob vigilância.
O pensamento autista pode ser um espaço fértil para o erotismo e o afecto. Há pessoas autistas com vidas imaginativas intensas, onde o desejo se organiza sob a forma de histórias internas, romances não partilhados, fantasias estruturadas ou narrativas que compensam a dificuldade de contacto com o exterior. A fantasia pode ser mais segura que o corpo, mais controlável, mais livre de julgamentos e menos vulnerável ao caos do encontro real.
Mas o corpo pode também ser uma via directa de expressão, sobretudo quando é reconhecido e respeitado. Algumas pessoas autistas desenvolvem uma relação erotizada com os seus próprios corpos, através do auto-toque, do prazer masturbatório, da exploração sensorial autónoma. Para outras, o corpo só se entrega quando há absoluta confiança, previsibilidade e um ambiente sensorialmente estável. Aqui, o desejo é corpo, mas corpo com condições.
O desejo na pessoa autista não verbal
A ausência de linguagem verbal não significa ausência de desejo. Esta é uma das confusões mais recorrentes e estigmatizantes. A pessoa autista não verbal pode experienciar todas as formas de desejo: sexual, romântico, afectivo, sensorial, intelectual. A diferença está na forma de expressar, e sobretudo, na possibilidade de ser escutada.
O corpo torna-se aqui linguagem principal: movimentos, expressões faciais, vocalizações, proximidade ou distância física, padrões comportamentais. O uso de tecnologias assistivas, a mediação por parceiros atentos e a criação de contextos seguros são essenciais para que o desejo tenha espaço de manifestação.
Muitas pessoas autistas não verbais desenvolvem relações afectivas profundas, com padrões próprios de intimidade e erotismo, que apenas se tornam visíveis quando olhamos para além da palavra. O desafio está em não patologizar o que é apenas diferente. O desejo está lá, mesmo quando o discurso não o acompanha.
O desejo no homem e na mulher autista
Embora o desejo não conheça géneros fixos, as vivências sociais e os estereótipos de género moldam a forma como ele se manifesta, também na neurodivergência.
Homens autistas tendem a ser socializados com maior permissividade para expressar o desejo sexual de forma directa, mesmo que esse desejo seja solitário, ritualizado ou menos adaptado às normas sociais. Podem apresentar maior fixação em fantasias específicas ou interesses intensos sobre sexualidade, mas também maior dificuldade em compreender nuances afectivas e emocionais nos contextos íntimos. Muitos enfrentam o estigma da hiperssexualização ou, pelo contrário, da exclusão romântica.
Mulheres autistas, por outro lado, são frequentemente educadas para reprimir ou camuflar o desejo. Muitas relatam só mais tarde na vida o acesso à consciência do próprio desejo, muitas vezes depois de anos de adaptação social. O desejo pode emergir em formas subtis, simbólicas, ligadas à afectividade, ao cuidado, à fusão emocional. No entanto, também elas experienciam erotismo intenso, fetiches, prazer solitário ou desejo não romântico, embora, por vezes, sem espaço para os exprimir.
A camuflagem social, mais frequente nas mulheres autistas, pode levar a que o desejo se desvie do seu centro, seja adiado, negado ou internalizado como culpa. Este fenómeno gera impactos significativos na autoestima e na possibilidade de construir relações autênticas.
Importa sublinhar que o desejo, tal como a identidade de género, não se limita ao binário masculino/feminino. Pessoas autistas trans, não-binárias ou queer trazem ainda outras camadas de complexidade e riqueza à experiência do desejo, desafiando a visão normativa e abrindo espaço para novas formas de expressão e escuta.
Reflexão final
O desejo na pessoa autista não é menor, nem ausente, é plural, profundo, e exige novas linguagens de leitura. Ele pode emergir no corpo ou no pensamento, na presença ou na ausência de palavras, com ou sem codificação romântica. O que ele pede é escuta. Escuta sem preconceito, sem pressa, sem o ruído da norma.
Compreender o desejo autista é um acto ético, não apenas clínico ou científico. É reconhecer a dignidade do sentir, do querer e do amar em todas as suas formas. E é, sobretudo, aceitar que o desejo não precisa ser traduzido para ser legítimo, basta ser respeitado.
O desejo é força vital e mistério. É carência e criação. Na pessoa autista, o desejo não desaparece, transforma-se, singulariza-se, reclama outras linguagens e outras temporalidades. Ao escutarmos essas formas de desejar, ampliamos não apenas a nossa compreensão da sexualidade, mas da própria condição humana. E talvez seja esse, afinal, o desejo mais profundo: o de sermos reconhecidos, desejados e amados… exactamente como somos.

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