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A curva da vida autista

Quando comecei a interessar-me pelo autismo, percorri a sua trajetória histórica. Descobri nomes que se tornaram marcos, desde os pioneiros da investigação, como Kanner, Asperger ou Sukhareva, até pessoas que receberam o diagnóstico, como Donald Triplett ou Temple Grandin. Grandin tem hoje 78 anos e Triplett tinha 90 quando faleceu em 1993, sendo considerado o primeiro indivíduo diagnosticado com autismo. Estes nomes funcionam como pontos cardeais numa cartografia ainda incompleta, que nos ajuda a pensar o tempo, a memória e a vida autista, mas que não nos dá respostas suficientes sobre o envelhecimento.


Tenho 50 anos. Se usar a minha própria vida como referência, percebo o quanto já vivi, o que aprendi, como as experiências moldaram os meus caminhos e como inevitavelmente influenciarão a minha velhice. Quando desejo projetar o futuro, encontro vasta literatura científica sobre o envelhecimento da população normativa, incluindo em Portugal. Contudo, deparo-me com um vazio quando procuro o mesmo conhecimento aplicado à pessoa autista. O silêncio das bibliotecas científicas nesta área é quase ensurdecedor.


Todos os seres humanos envelhecem, um dia após o outro, mas o envelhecimento não é apenas cronologia. É marcado por transformações biológicas, psicológicas e sociais que definem etapas de vida. O adolescente cresce, mas não envelhece ainda. O idoso, pelo contrário, carrega nas células, no corpo e no olhar, os sinais irreversíveis do tempo.


O autismo, enquanto condição do neurodesenvolvimento, acompanha a pessoa desde cedo e até ao fim da vida. Contudo, a variabilidade do espectro, associada às diferentes histórias de vida, torna o estudo do envelhecimento particularmente complexo. Ainda pouco se sabe sobre como as características nucleares do autismo se transformam ao longo das décadas.


E aqui a reflexão ganha densidade quando olhamos para vidas concretas.


Manuel nasceu nos anos cinquenta, numa vila rural. Desde cedo era descrito como estranho e isolado, mas só aos 55 anos recebeu diagnóstico formal. Viveu uma vida estruturada por rotinas e interesses intensos, trabalhou como desenhador técnico, manteve autonomia funcional e encontrou estabilidade no detalhe e na repetição. O diagnóstico tardio trouxe alívio mas também mágoa.


Hoje, o envelhecimento é vivido com alguma saúde física, graças aos hábitos regulares, mas também com crescente isolamento social, ausência de rede familiar próxima e vulnerabilidade ao stress e à depressão. A reforma retirou-lhe a estrutura do trabalho, expondo-o ainda mais à solidão. Na relação com os serviços de saúde sente incompreensão e dificuldades de comunicação.


Helena nasceu em Lisboa, em 1957. Foi diagnosticada com autismo aos 6 anos, após dificuldades significativas de linguagem e interação social. Os pais, de classe média instruída, procuraram apoio em centros especializados, numa época em que os recursos eram escassos. Ao longo da infância, recebeu apoio escolar adaptado e terapia da fala.


Na adolescência, enfrentou barreiras sociais, mas encontrou em atividades artísticas — a pintura e o canto coral — um espaço de expressão. Na idade adulta, trabalhou como bibliotecária. O ambiente estruturado, previsível e silencioso permitiu-lhe florescer profissionalmente. Casou-se, teve uma filha e encontrou no diagnóstico precoce uma chave para desenvolver estratégias de autorregulação.


Aos 60 anos reformou-se. O impacto foi forte, sobretudo porque perdeu o enquadramento diário da biblioteca. Contudo, manteve o envolvimento comunitário através do coro e da pintura. Hoje enfrenta problemas de artrite, mas conserva rede familiar e alguma vida social.


Rosa nasceu em 1948, numa família numerosa e pobre. Desde a infância apresentou atraso global do desenvolvimento, com dificuldades marcadas de linguagem e autonomia. Na época, a compreensão do autismo era quase inexistente em Portugal, pelo que foi considerada “incapaz”. Aos 14 anos foi internada numa instituição religiosa, onde permaneceu grande parte da vida.


O quotidiano institucional trouxe-lhe rotinas rígidas, mas pouco personalizadas. As atividades eram repetitivas e havia escassa atenção à sua individualidade. Recebeu cuidados básicos de saúde, mas também viveu episódios de negligência e, em momentos mais obscuros, de abuso. Nunca teve oportunidade de trabalhar nem de constituir família.


Hoje, aos 75 anos, Rosa reside numa instituição de longa duração. Apresenta défice cognitivo moderado, dependência funcional parcial e fragilidade física. A ausência de vínculos familiares e de experiências de autonomia limitou profundamente as suas possibilidades de florescimento. No entanto, encontra prazer em pequenas atividades sensoriais, como ouvir música ou acariciar tecidos, e demonstra bem-estar quando acompanhada por profissionais atentos.


Os três casos revelam a diversidade de trajetórias do envelhecimento autista: Manuel ilustra o impacto de um diagnóstico tardio e do isolamento acumulado; Helena mostra como o diagnóstico precoce e o apoio familiar podem favorecer uma vida mais integrada e um envelhecimento com maior resiliência; Rosa expõe a vulnerabilidade extrema das pessoas com défice cognitivo associado, que, devido à ausência de apoios comunitários e à institucionalização precoce, chegam à velhice com menor autonomia e maior fragilidade.


Estes percursos lembram-nos que o envelhecimento autista é fortemente condicionado por fatores estruturais: acesso ou não a diagnóstico precoce, qualidade das redes de apoio, políticas sociais, recursos de saúde e oportunidades de participação ao longo da vida.


Se a vida autista é um mapa, Manuel desenhou linhas solitárias, Helena traçou caminhos partilhados e Rosa caminhou dentro de muros institucionais. As três cartografias revelam como a curva da vida autista não é uniforme. É feita de rios que correm isolados, enseadas que se abrem para o encontro e fronteiras que aprisionam.


Na velhice, o tempo dobra o mapa. Manuel conserva as suas rotinas como ilhas de estabilidade. Helena encontra na arte e na família as pontes que a sustentam. Rosa vive num território estreito, mas ainda assim encontra beleza em pequenos detalhes sensoriais.


A curva da vida autista é, portanto, múltipla: pode ser solitária, comunitária ou institucionalizada. Mas em todas elas há humanidade, vulnerabilidade e resistência.


Manuel, Helena e Rosa mostram-nos três modos de envelhecer no espectro. A sua diversidade torna evidente a inadequação de modelos normativos de envelhecimento. Precisamos de um paradigma que reconheça as especificidades autistas e as múltiplas trajetórias possíveis, integrando fatores biológicos, psicológicos, sociais e existenciais.


O envelhecimento da pessoa autista não deve ser pensado como uma mera curva descendente, mas como uma cartografia plural, onde cada vida escreve o seu próprio traço.

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