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Velha!? Quem!? Eu!?

Se já vamos conseguindo compreender que a Perturbação do Espectro do Autismo não existe apenas em crianças e jovens, mas também em pessoas adultas. Ainda são muitos aqueles que pensam nas pessoas autistas adultas até aos 40 - 50 anos. Depois disso parece haver um grande silêncio. E quando falamos de avaliar uma pessoa com mais de 60 anos para despiste de Perturbação do Espectro do Autismo. Há muitos que correm logo a perguntar - Isso é possível? E se sim, que sentido fará? Quanto à ultima questão colocada, pergunto-me se algum de vocês se questionaria da mesma forma em relação a uma outra qualquer condição de saúde física? Porventura não, até porque pensaria em querer continuar a viver até perto dos 81 ou 83 anos, tendo em conta a idade proposta como duração média de vida. E já agora com conhecimento acerca da sua pessoa e de que tipo de características fazem parte da sua pessoa. Sejam aquelas positivas, mas também aquelas que lhes causa maior constrangimento em alguns domínios. Para além de poder querer saber o que pode fazer, nomeadamente para melhor se compreender, seja no presente momento mas também ao longo do seu projecto de vida existencial. E para aqueles que têm a certeza de que não há pessoas autistas idosas, perguntem ao Donald Tripplet - a primeira pessoa diagnosticada com autismo pelo Dr. Leo Kanner em 1938. Talvez ele ainda vos consiga responder às questões que possam ter. Alguns mais crentes na existência de pessoas autistas idosas certamente começaram a perguntar-se - E que instrumentos é que podem ser usados para realizar o diagnóstico? O ADI-R - a entrevista realizada junto dos pais/cuidadores para perceber qual a sua percepção em relação ao comportamento da pessoa avaliada? Mas se a pessoa a avaliar já tem ela própria mais de 60 anos, os pais ou cuidadores ainda estarão vivos? E se sim, que idade terão? 80, 90 anos? E vão conseguir lembrar-se de alguma informação? E no que diz respeito ao ADOS-2 módulo 4, usado para fazer a observação comportamental da pessoa a avaliar, como poderá ser usado numa pessoa com mais de 60 anos? E esta ainda estará capaz de informar de uma forma adequada em relação à sua história clinica? E a alguns dos dados importantes acerca do seu comportamento ao longo do desenvolvimento? E especificamente em relação ao período da infância! Além de que é preciso também ter em conta que na pessoa com mais de 60 anos e com suspeita de diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, poderemos estar a falar de uma pessoa com uma Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental associada, ou pelo menos com um perfil cognitivo e intelectual com maior compromisso. E para além disso, é esperado que a pessoa possa apresentar algum declínio cognitivo ligeiro próprio da sua faixa etária. Já para não falar da existência mais do que certa de outras condições neuropsiquiátricas associadas e também questões de saúde física associadas. Nesta altura quero lembrar que além dos instrumentos usados na chamada avaliação formal - ADI-R e ADOS-2, o diagnóstico de autismo é clínico e realizado no âmbito de uma consulta médica ou psicológica. Contudo, poderá ser usado na pessoa com mais de 60 anos o preenchimento do questionário de rastreio - Quociente do Espectro Autista para adultos (QA - 50) do Baron-Cohen e colaboradores. Além disso e atendendo à idade da pessoa a avaliar, será fundamental a utilização de uma avaliação neuropsicológica. Não propriamente para ajudar a determinar o seu QI, mas para poder compreender na actualidade o seu perfil de funcionamento cognitivo e intelectual, suas forças e fraquezas, até para ajudar a melhor determinar o conjunto de ajudas necessárias neste período de vida e subsequente. E será fundamental que a avaliação tenha em mente a importância do diagnóstico diferencial para toda uma gama de outras condições neuropsiquiátricas existentes. Não somente aquelas que são conhecidas nas pessoas autistas, nomeadamente PHDA, Perturbação de Ansiedade ou do Humor, POC, Esquizofrenia, etc, mas também de Demência, Perturbação da Personalidade.


Heliodoro (nome fictício) tem 72 anos. Há uns anos foi encaminhado para fazer eletroconvulsiva por causa de uma depressão de início tardio. Situação que se pensa causada pelo falecimento da sua esposa quando ele tinha 64 anos e pela sua entrada na reforma logo um ano depois. Os sintomas que apareceram na altura foram um agravamento no humor, letargia, medo, preocupação, falta de perspectiva no futuro, comportamento regressivo e negligência generalizada consigo próprio. A principal queixa era um medo geral dos dias, da vida e do futuro. Já tinha sido tentado intervenção farmacológica com diferentes anti-depressivos e ansioliticos durante seis anos mas sem qualquer sucesso terapêutico.


A filha de Heliodoro expressou que ele nunca tinha realmente mostrado interesse nos outros. Facto que levou a que a filha tivesse deixado de contactar com ele há alguns anos atrás. Heliodoro não foi capaz de estabalecer relações com outras pessoas além de sua esposa e uma amiga dela. No entanto, gostava de estar na companhia de pessoas. Quando entre outros, preferia ficar sozinho, não fazendo nenhuma tentativa de socialização, mas ainda aparentemente aproveitando a ocasião. É uma pessoa erudito. Antes da sua entrada na reforma estava sempre ocupado na sua própria empresa produtora de aparelhos de escritório. No trabalho era uma pessoa com um comportamento bastante rígido. Quando provocado ficava chateado e retirava-se. Depois do trabalho, costumava ir ao clube de ténis. Era fascinado por ténis e parecia especialmente interessado nas regras do jogo. Além disso, sempre estabeleceu padrões elevados para si mesmo. A sua filha descreveu-o como distante e autoritário. Ele descreveu-se como um solitário, e sem muito interesse em ter contacto com outras pessoas.


Na avaliação através do ADOS-2 módulo 4, e realizado de forma adaptada à idade. Dentro do domínio da Comunicação, Heliodoro atingiu o valor do algoritmo para Perturbação do Espectro do Autismo. O seu discurso continha pouca variação na tonalidade e expressividade. Ele às vezes elaborava as suas próprias respostas espontaneamente durante a sessão de observação, mas apenas ofereceu informações factuais. Não houve uso espontâneo de gestos descritivos, empáticos ou emocionais. Dentro da domínio da Interação Social Recíproca, Heliodoro também atingiu o valor limite. Mostrou uma gama limitada de expressões faciais, e a eficácia da comunicação, da sua compreensão e empatia pelos sentimentos de outras pessoas também foram limitadas. A maioria das suas aberturas sociais durante a sessão foram restritas a questões pessoais ou relacionadas aos seus próprios interesses. Mostrou uma capacidade de resposta um tanto ou quanto limitada para a maioria das situações sociais. O Intercâmbio social durante o sessão em termos de comportamentos verbais foi limitada e restrito a certos contextos. A qualidade geral da interação com o Heliodoro poderia ser descrito como sendo unilateral. Uma vez que todos os três limites para a Perturbação do Espectro do Autismo foram obtidos. Sendo que esta informação levou-nos a corroborar o diagnóstico em questão.


Antes deste diagnóstico ter sido considerado, suspeitavam de Heliodoro apresentar uma Perturbação da Personalidade. Na avaliação para traçar o seu perfil de personalidade foram encontrados traços de depressão, paranóia, psicopatia e pontuações altas ao nível da preocupação, ansiedade, tensão, dúvidas, obsessividade e procura pela perfeição, assim como traços de esquizofrenia. Em outros instrumentos usados ele pontuou em comportamentos de evitamento e de baixos níveis de assertividade.


Victor, de 83 anos, não tinha histórico psiquiátrico quando foi encaminhado para fazer uma avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo. A sua esposa, que o conhecia desde sempre, iniciou o processo de encaminhamento porque tinha reconhecida alguns dos seus comportamentos como podendo estar inscritos no espectro do autismo e também porque o seu filho havia sido diagnosticado com Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1). Ela acompanhou-o nas várias vezes que Victor foi às consultas. Victor apresentava um humor deprimido já há vários anos, mas nunca tinha procurado ajuda para os seus problemas. Victor investiu grande tempo da sua vida contemplando e vivendo as suas crenças cristãs e religiosas. Mostrou muito pouca iniciativa e teve dificuldade em expressar as suas emoções e estava irritado. A sua postura podia ser caracterizada por rigidez. Ele teve problemas para lidar com a mudança e com o planeamento e organização do seu dia. Ele poderia reagir com extrema raiva quando as suas rotinas mais rígidas eram interrompido. Por exemplo, uma pequena mudança nos horários bastante restritos das refeições.


Victor explicou que quando era um criança criou o seu próprio mundo e não partilhou as suas experiências ou iniciava contacto com outras pessoas. Interpretava a linguagem de forma literal e muitas vezes falhava no reconhecimento das piadas nas conversas com as pessoas. Em criança vivia obcecado pelos componentes dos brinquedos e não conseguia parar de brincar com eles. A esposa dele relembrou inúmeras anedotas de parentes sobre o comportamento infantil peculiar de seu marido. Victor estava casado há 53 anos e tinha dois filhos. Não havia reciprocidade no seu relacionamento com sua esposa e filhos. Antes da reforma trabalhou como supervisor técnico. Victor não tinha amigos, mas não parecia sentir falta de os ter.


No momento de observação através do ADOS-2 módulo 4, e dentro do domínio Comunicação, Victor demonstrou ter comportamentos que pontuaram significativamente no algoritmo para Espectro do Autismo. O seu discurso durante a sessão do ADOS incluiu algumas elaborações espontâneas de suas próprias respostas. Houve algumas iniciativas espontâneas, mas com uso pouco frequente de gestos descritivos, empáticos ou emocionais gestos. Dentro do domínio da Interação Social Recíproca, Victor apresentou uma expressão facial continuamente tensa, embora dirigida ao examinador. A comunicação de sua compreensão e empatia das emoções dos outros eram superficiais. A maioria de suas aberturas sociais durante a sessão falhou em termos de qualidade social e eram inadequadas. No inicio da sessão do ADOS, Victor não esperou que lhe fosse oferecido um café e ao invés disso presumiu que a chávena de café já frio que estava na mesa do gabinete fosse para si, sendo que era do examinador.


A sua esposa também forneceu informações vitais sobre várias das suas ações e comportamentos durante os 60 anos que ela o conhece, mostrando um padrão crónico de rigidez, obsessão com detalhes, falta de reciprocidade e trocas sociais, e uma tendência para interpretar a linguagem de forma literal. Embora não tivéssemos conseguido recolher nenhuma informação acerca de aspectos desenvolvimentais da infância, a apresentação clinica e os resultados no ADOS, em combinação com as suas informações corroboradas pela sua esposa, nomeadamente acerca do seu tempo de juventude, levou-nos a equacionar o diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 1.


 
 
 

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