top of page

Uma cadeira nunca está só

Uma cadeira nunca está só. Um conto existencial sobre a solidão, o sofrimento e a inteireza. A caminho das férias, das minhas, mas também de alguns outros, penso na solidão, na solitude, e nas infinitésimas formas de se estar e ser.


A solidão tem má fama. É confundida com ausência, com rejeição, com tristeza muda. Mas há solidões que são plenitude. Há presenças que só se revelam no recolhimento. E há vidas, como muitas das vidas autistas, em que a solidão não é um exílio, é casa.


O pensamento ocidental, desde Aristóteles, tende a declarar que o ser humano é, por natureza, um animal social. A ideia de que a realização se dá na relação, de que o outro é espelho e medida de sentido, tornou-se axioma ético e normativo. No entanto, as existências autistas frequentemente desconcertam esse paradigma: não por recusa da relação, mas por lhe atribuírem outra qualidade, outra gramática, outro tempo. Não é que a pessoa autista não deseje o mundo. É que, muitas vezes, o mundo exige-lhe uma coreografia que não faz sentido, uma dança ruidosa para a qual nunca foi ensaiado.


Assim, na experiência autista, a solidão pode ser refúgio, mas mais que isso, pode ser encontro. Encontro consigo mesmo, com os próprios ritmos, com a intensidade dos pensamentos que não precisam ser verbalizados para serem verdadeiros. Enquanto para muitos a solidão é silêncio desconfortável, para pessoas autistas ela pode ser um espaço onde a linguagem finalmente sossega, onde os sentidos se reorganizam e onde o eu, tantas vezes fragmentado pelas exigências do social, pode reaprender a respirar.


A filosofia existencial reconhece a solidão como parte constitutiva do ser. Kierkegaard falou do desespero como uma condição humana essencial, mas também como caminho para a autenticidade. Heidegger descreveu o ser-para-a-morte como aquilo que nos chama à propriedade do nosso existir. Sartre afirmou que estamos condenados à liberdade, e que essa liberdade nos separa, irremediavelmente, dos outros. Mas talvez nenhuma dessas descrições contemple a nuance da solidão autista, não enquanto tragédia, mas enquanto necessidade vital. Talvez uma leitura poética-existencial do autismo possa oferecer à filosofia um outro modo de pensar a presença, não como fusão com o outro, mas como plena imersão no ser.


A solidão, então, pode ser vista como um solo fértil onde floresce a autenticidade. Para muitas pessoas autistas, é nesse espaço que os interesses profundos ganham cor, que os sistemas de pensamento se desenvolvem, que os afectos silenciosos encontram forma. A solitude torna-se condição de possibilidade para o bem-estar, e não sua negação. É um modo de habitar o tempo e o corpo sem a constante vigilância da norma, sem o esforço contínuo de tradução de si para a linguagem dos outros.


Há, por vezes, um preconceito subtil, quase caritativo, que tenta “salvar” as pessoas autistas da sua solidão. Um impulso que parte da suposição de que estar só é estar mal. Mas talvez devêssemos escutar com mais cuidado. Há solidões que são escolhidas. Há distâncias que não são falta, mas forma de presença. Há silêncios que são linguagem densa, onde o mundo se revela sem ruído.


Que o existencialismo nos ensine a respeitar a angústia, mas também a plenitude. Que a clínica se faça de escuta e não de correcção. Que a cultura aprenda que a solidão não é sempre sintoma. E que possamos, como terapeutas, pensadores e companheiros de caminho, aprender com as vidas autistas que a intimidade nem sempre se constrói no contacto, mas, muitas vezes, no respeito pela distância.


A solidão, quando não é sofrimento, é liberdade.

É o som que não pede eco.

ree

 
 
 

Comentários


Informação útil:

  • Facebook Social Icon
  • YouTube Social  Icon
  • Instagram Social Icon
  • Twitter Social Icon

Cadastre-se

©2018 by Autismo no Adulto. Proudly created with Wix.com

bottom of page