Um olhar diferente sobre o trauma
- pedrorodrigues

- 17 de set.
- 4 min de leitura
Nos últimos anos, habituámos a ouvir falar de trauma quase como uma palavra do quotidiano. Dizemos com facilidade que algo foi traumático, mesmo quando não estamos a falar de um evento que ameaça a vida ou a integridade física. O mesmo aconteceu com termos como depressão ou ansiedade, que passaram a designar estados de tristeza ou nervosismo que nem sempre correspondem ao que está descrito nos manuais clínicos. Mas talvez isso revele algo de importante: as palavras que usamos vão-se moldando às nossas vivências.
No caso do trauma, essa plasticidade é ainda mais significativa, porque a experiência de ser humano é, em si mesma, atravessada pela possibilidade de viver acontecimentos que nos ferem de forma profunda. Desde os tempos mais primitivos em que os perigos vinham de animais selvagens, até às ameaças da vida contemporânea, a nossa espécie sempre carregou o risco de se confrontar com experiências que deixam marcas.
A psicologia clínica e a psiquiatria criaram definições rigorosas para diferenciar o que chamamos de trauma clínico. Segundo o manual diagnóstico DSM 5 TR, para falarmos de perturbação de stress pós traumático (PTSD) é necessária a exposição direta ou indireta a situações de morte, ameaça de morte, violência sexual ou ferimentos graves. Mas se nos limitarmos a esta definição, arriscamos perder de vista muitas experiências humanas que não cumprem estes critérios e, ainda assim, deixam cicatrizes.
Quando pensamos na vida de pessoas autistas, esta limitação torna se evidente. O quotidiano pode ser palco de situações que, não preenchendo os critérios formais de PTSD, têm um impacto muito semelhante. O barulho incessante de uma sala cheia, a mudança inesperada de uma rotina, o bullying continuado, a solidão, a rejeição social ou a perda de um vínculo afetivo podem ser sentidos como verdadeiras experiências traumáticas.
“Na escola, sempre que mudavam de sala sem avisar, sentia me perdida. Os outros queixavam se de ter de carregar os cadernos de um lado para o outro. Eu ficava horas a pensar no que poderia acontecer na nova sala, se teria luzes demasiado fortes, se as mesas estariam perto demais, se conseguiria concentrar me. Parecia um detalhe para todos, mas para mim era um mundo a desabar.”
Estes acontecimentos não se encaixam no que a DSM considera um trauma de alto impacto, mas muitas vezes produzem reações semelhantes às de PTSD: memórias intrusivas, forte reatividade a estímulos associados, sensação persistente de ameaça e recurso a estratégias de coping que acabam por prender ainda mais a pessoa ao sofrimento. A diferença está em que, no caso das pessoas autistas, a vulnerabilidade não nasce apenas do acontecimento em si, mas também da forma particular como o cérebro processa as experiências e o ambiente.
A rigidez cognitiva pode transformar um acidente isolado em crença absoluta de perigo contínuo. A hipersensibilidade sensorial pode fixar um som ou um cheiro a tal ponto que, ao ser reencontrado, desencadeia respostas físicas intensas, como se o evento estivesse a repetir se. A necessidade de previsibilidade pode tornar qualquer mudança inesperada num abalo que retira o chão por completo.
“Uma vez tropecei e caí nas escadas do metro. Não me magoei muito, mas desde então cada vez que entro numa estação sinto o corpo ficar rígido. Evito ao máximo usar transportes, mesmo quando sei que seria mais fácil. É como se aquela queda estivesse sempre a acontecer outra vez, só dentro de mim.”
A semelhança com PTSD está, portanto, na forma como estas experiências permanecem vivas, repetidas, reorganizando a perceção do mundo e da segurança pessoal. Mas a diferença fundamental é que não correspondem ao que a nosografia tradicional classifica como trauma. E é aqui que precisamos de mudar o olhar. Porque se ficarmos presos ao diagnóstico formal, corremos o risco de desvalorizar o sofrimento de quem vive estas experiências como verdadeiras feridas psicológicas.
É também importante sublinhar que o apoio social, reconhecido como um dos maiores fatores de proteção face ao trauma, é frequentemente mais frágil na vida das pessoas autistas. O isolamento, a dificuldade em partilhar experiências ou a incompreensão do meio fazem com que a dor se acumule em silêncio.
“Contei à minha mãe que sentia medo todos os dias na escola por causa das provocações. Ela disse que eu tinha de aprender a ser mais forte. Desde esse dia nunca mais falei sobre isso. O medo cresceu sozinho dentro de mim.”
O que fazer, então, diante desta realidade? O primeiro passo é reconhecer que as experiências vividas pelas pessoas autistas podem e devem ser consideradas dentro de um enquadramento que lhes permita encontrar nome e sentido. Não se trata de estender o diagnóstico de PTSD a tudo o que dói, mas de compreender que há acontecimentos impactantes que exigem atenção clínica, mesmo sem cumprir critérios formais.
Esse reconhecimento abre caminho para estratégias de intervenção que validem a experiência, ajudem a pessoa a reorganizar a memória do acontecimento e favoreçam novas formas de enfrentamento. Trabalhar a diferenciação entre passado e presente, treinar técnicas de grounding para lidar com memórias intrusivas, apoiar a flexibilização de padrões de pensamento rígidos, criar redes de apoio social seguras, são alguns dos caminhos possíveis.
Mais do que encaixar em diagnósticos, trata se de cuidar de pessoas. E cuidar implica escutar a singularidade de cada vivência, reconhecer o peso real de cada experiência, valorizar a dor onde ela existe. Só assim será possível devolver algum controlo a quem tantas vezes sente que o mundo é demasiado grande, imprevisível e ameaçador.
Olhar o trauma nas pessoas autistas de forma diferente não é um exercício teórico. É um compromisso ético. É admitir que a dor não precisa de um rótulo clínico para ser válida. E que o sofrimento, quando é reconhecido e partilhado, pode finalmente encontrar um espaço para ser transformado.




Comentários