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Tricotar-me

tri.co.tar

verbo transitivo e intransitivo

executar um tecido em malhas entrelaçadas com um fio têxtil e agulhas especiais; fazer tricô. = tricotear.


O meu psicólogo tem-me falado sobre o mindfulness, e eu tenho tentado ensina-lo a tricotar! diz Ângela (nome fictício). Tricotar, mindfulness, tricotear-me, consultas! Parece que nada tem a ver com nada, mas ali nas consultas tudo tem a ver! continua. Antes era muito difícil de estar parada sem fazer nada, estivesse onde quer que fosse. Foi assim desde o jardim de infância. E não era qualquer coisa que me detinha. Não me entretinha. Diziam que era irrequieta. Depois disseram que tinha PHDA. Depois disseram que só queria fazer o que me interessava. E voltaram a dizer que tinha PHDA. Como podes perceber a minha vida parecia uma teia bastante confusa! continua. Tudo começou com as aranhas! Como é que um animal tão pequeno e aparentemente tão insignificante conseguia fazer algo tão complexo? perguntava-se. Passei a seguir aranhas, o que fez que a minha única colega que me falava deixou de o fazer. Ela tinha medo de aranhas! Em casa também não percebiam aquele meu interesse, e por isso tive de começar a guardar aranhas em caixas para elas fazerem os ninhos e assim conseguir vê-las a construir aquelas obras de arte! refere. Quando me perguntavam o que é que eu fazia horas seguidas no quarto, eu ficava em silêncio. Não podia dizer que ficava a olhar as aranhas a fazerem os seus ninhos. Ninguém me ia compreender, certo? pergunta retoricamente.


Mas a minha vida continuou a ficar tão complexa como as obras de arte das aranhas! refere. A tristeza e a ansiedade tomavam conta de mim cada vez mais. Passava tempos se me alimentar. Estive um ano em que não conseguir ir à escola. Comecei um dia por não me conseguir levantar. Talvez estivesse doente. No dia a seguir não conseguia sequer pensar na ideia de lá voltar. E a pensar no que é que eles me iam perguntar e eu sem saber o que é que lhes havia de responder! diz. Como tinha estado doente durante a semana e os meus pais tiveram de ir trabalhar houve uma pessoa que ficou lá em casa a cuidar de mim. Não sei quem era. Mas lembro-me que no dia a seguir havia algo na sala lá em casa que nunca tinha visto a não ser na caixa onde guardava as aranhas! Descobri pouco depois que aquilo era tricô. Não que tivesse perguntado, até porque não sabia o que perguntar. E na altura não havia sequer internet. Mas dois dias depois a mesma senhora apareceu lá em casa para ir buscar o tal tricô que se tinha esquecido e a minha mãe perguntou se ela podia ficar mais uns dias a tomar conta de mim. Acabou por ser mais do que uns dias porque naquele ano eu já não voltei à escola. Até porque tinha de aprender a fazer tricô. E não sabia como perguntar. E não havia sequer internet. Além de que ninguém ia compreender que eu haveria de querer ficar em casa a aprender a fazer tricô em vez de ir à escola, acrescenta.


O único tempo onde não sentia stress era quando estava a olhar para as aranhas, e naquela altura a ver a fazer tricô. Tudo o resto na minha vida, nos meus dias era uma inquietação. Tudo era uma pergunta e as perguntas não têm uma só resposta quando tu não as perguntas a mais ninguém a não ser a ti própria! percebes? diz Ângela. Acordar era um stress. E se não conseguisse fazer uma das coisas que estava pensada para ser feita naquele dia? e rapidamente o stress passou a ser também para dormir. Até porque o acordar está ligado ao dormir e uma coisa leva à outra e surge uma pergunta que me deixava presa a pensar nela sem conseguir parar! Comer era um stress. A comida era um stress. Os alimentos têm um formato estranho na maior parte das vezes, e nem sequer tem nada a ver com os seus nomes. A única coisa que ainda fui capaz de comer durante mais tempo foi esparguete. Porque ficava a fazer rendas no prato com ele e aquilo parecia as teias das aranhas. Mas eu não podia dizer nada disso porque as pessoas não iam compreender. O tempo foi passando, mas as pessoas continuavam sem me compreender. E aos poucos deixaram de querer saber e até de se preocuparem. Diziam que não havia nada a fazer comigo.


Um dia, já não sei quando ou em que altura, até porque eu nunca consegui perceber bem essa coisa do tempo a passar. Mas a senhora que lá ficava em casa a tomar conta de mim, morreu. Primero pensei que já não queria lá ir. Ninguém me tinha explicado. E ela simplesmente deixou de aparecer. E eu não perguntei nada. Até porque não sabia o que havia de perguntar ou o que eles haveriam de me dizer ou ainda pior perguntar de volta, diz.


Naquela altura já tinham passado alguns anos e eu já sabia tricotar. Nunca o tinha feito, até porque não tinha as lãs e as agulhas. Quem tinha era a senhora. Mas eu não sabia se podia pedir para fazer. Tudo era muito confuso e incerto, principalmente incerto. Mas quando ela deixou de vir deixou ficar as lãs e as agulhas. E eu tinha na minha cabeça tudo aprendido e sabia como o fazer. Sem que ninguém percebesse levei a lã e as agulhas para o meu quarto e passei a fazer tricô no quarto. Ninguém deu conta da falta das lãs e das agulhas. Até que as lãs acabaram. Voltei a adoecer. Naquela altura foi pior do que as outras vezes. Deixei de comer durante mais dias e disseram que tinha de ir para o hospital. Não tive hipótese, até porque não tinha forças para nada, nem para tricotar. Mas ainda bem que fui para o hospital, porque depois de melhor e começar a andar nos corredores do hospital encontrei uma pessoa que fazia tricô no serviço de enfermagem. Um dia ela tinha trazido um saco com lãs lá dentro e tinha um papel com o preço das lãs e a morada onde deveria ter comprado. Foi ai que fiquei mais aliviado porque sabia que havia forma de continuar a tricotar fora do hospital. Mas não me queriam deixar sair, até porque a ansiedade e a tristeza continuavam muito presentes. Foi aí que encontrei o psicólogo que me falou do mindfulness! disse.


Ele deixou-me entrar com as lãs. Foi chamar-me à sala onde eu estava a tricotar e disse o meu nome e que podia trazer as lãs comigo. Não sei se ele percebeu que eu não iria de outra forma, mas eu lá fui. E sentei-me e continuei a tricotar. E ele não me disse nada sobre isso. Apenas fez menção de que era uma coisa que ele não sabia. A primeira consulta foi basicamente isso. Ao fim de duas ou três consultas muito semelhantes ele perguntou-me se podíamos fazer um acordo. Disse que eu lhe podia ensinar a fazer tricô e ele poderia ajuda-la com a ansiedade e a tristeza. Principalmente pensei que era uma coisa boa porque não tinha de parar de fazer tricô.


Gostei da ideia dele falar do tricô e das coisas da minha vida. Não que eu lhe tivesse dito nada. Mas ele tinha um dossiê com coisas minhas escritas. Deve ter falado com os meus pais e assim. Mas o que mais gostava era dele falar do tricô e das coisas da minha vida. Nunca pensei que isso fosse possível. Sempre pensei que apenas as aranhas conseguiam e a outra senhora que tinha morrido e agora eu! refere.


Ensinou-me a respirar. Isso mesmo, a respirar. Os meus pais já me tinham dito que eu teria de ir para a natação para aprender a respirar, mas eu não sabia o que ia lá fazer e como tal nunca consegui ir. Também aprendi a conhecer o meu corpo, assim como os limites do meu corpo. E com isso aprendi a conhecer-me. Pela primeira vez consegui ver-me. Como as pessoas diziam que se conseguiam ver de fora. Eu nunca tinha conseguido, até que consegui completar aquela obra de arte que estão a ver na fotografia deste texto. Essa obra de arte sou eu. Demorou algum tempo até lá chegar. Não sei quanto tempo ou anos. Nunca aprendi a noção de tempo. Mas aprendia a respirar e a conhecer-me. O meu psicólogo nunca aprendeu a tricotar, conclui.


 
 
 

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