Alguns de vocês têm idade para se lembrar deste álbum e de o terem ouvido até à exaustão. Outros serão mais novos, mas têm certamente boas influências dos primeiros, além de bom gosto musical. Aqueles que têm idade para se lembrar de terem ouvido o álbum de vinil, terão igualmente oportunidade de terem vivido determinadas experiências de vida importantes de serem contadas. E não, não vou falar das experiências de consumos de substâncias psicadélicas nos anos 60.
Já todos sabem que o diagnóstico de autismo apenas entrou na DSM em 1980. Se eu fizer as contas partindo do meu exemplo pessoal, em 1980 tinha cinco anos, como tantos outros milhões de crianças. E destes milhões de crianças, muitas delas foram crescendo com a sensação de não pertencerem genuinamente a muita coisa neste mundo na maior parte das vezes. Mas naquela altura frequentemente se encaixava as pessoas no grupo dos estranhos e outras designações similares. Não que hoje já não se faça, porque ainda se faz, talvez menos frequentemente e encapotado com outras designações. Na altura eram estranhos, e aqueles porventura que pertenciam a determinados contextos, nomeadamente académicos, pareciam estar de certa forma protegidos. Havia uma ideia de neste contexto ser esperado ser-se algo estranho. Por exemplo, muitas vezes a genialidade, seja no mundo académico mas também nas artes e não só, é vista como uma característica obrigatória. Mas o certo é que dentro deste grupo de pessoas estranhas havia e continua a haver uma grande diversidade.
Tal como o senhor Camaleão, também conhecido por David Bowie, o André (nome fictício), também é muita coisa. É o André filho, esposo, pai, investigador na área do autismo, académico e docente universitário e activista na comunidade autista. Sou tudo isto e algo mais, diz André. Umas vezes sou mais uma coisa e outras vezes outra, continua. Por exemplo, agora que estou aqui a falar contigo sinto que sou tudo isto, sou o André e sou autista. Descobri-o aqui em conjunto contigo. E tenho aprendido que o ser autista é ser tudo. Por que tenho em todos os meus diferentes Eu uma parte de ser autista, acrescenta. O André filho, apesar de não ter sido diagnosticado, não deixava e ser autista. Sou esposo e a minha companheira sente o meu autismo, este meu ser autista. Assim como a minha filha Andreia (nome fictício), que também desconfio que ela seja também autista, também sinto que algumas partes de ser pai também tem formas do meu ser autista. E o meu ser investigador e ainda mais na área do autismo é impossível não ter o meu total contributo de ser autista.
Sou descaradamente autista, diz. Tenho sido o tipo de autista que não vai a lugar nenhum, perturbador, estranho, erro, falho, esqueço-me, etc. Além de ser o tipo de autista que é inspirador, que vai a lugares e mudo o mundo, acrescenta. Já não era a primeira vez que me deparava a falar com alguém que nem sequer conheço quando vou a algum sitio e acabo por ficar a ajudar a resolver algum problema dessa mesma pessoa. Eu sou o tipo de autista que tinha meltdowns todos os dias. Ao ponto de me sentir preso ao chão. E um dia ter sido de tal forma difícil conseguir-me controlar que acabaram por me sedar para conseguirem levar-me para o hospital. Ao longo da vida fui ouvindo todo o tipo de descrições sobre mim. Desde aquela pessoa que chamara beco sem saída, passando pelo autista que nasceu para morrer por suicídio, ainda que algumas pessoas tenham dito que o meu autismo é funcional e mais fácil comparado com tantos outros, refere. Eu sou uma pessoa muito honesta, mas mascaro-me na maioria das vezes e consigo caminhar, ainda que de uma forma frágil entre a linha que liga o pessoal ao profissional, continua. A determinado ponto desse caminho decidi ser um académico na área do autismo, ainda que primeiro eu fosse uma pessoa autista, e além do mais um activista, e só no final um académico, conclui.
No principio desta minha escolha senti alguns receios. Na verdade senti muitos, mas continuei. Até porque fui percebendo que como o envolvimento de pessoas autistas está a aumentar na investigação, pensei que o meu contributo seria uma mais valia. E procurei fazer isso na investigação mas também na docência. Ainda que ao tentar expressar as minhas próprias experiências como autista, fui interrompido por causa da minha falta de objectividade e porque não me poderia colocar no lugar de uma pessoa com autismo grave. À semelhança de como já ouvi em muitos outros locais de que determinada pessoa não pode falar sobre o assunto porque nunca viveu tal situação. Um absurdo. E como tal passei muito tempo a aprender que necessitava de uma teoria da mente para pessoas que não conseguiam entender que a minha experiência enquanto autista era fundamentalmente diferente daquilo que vinha a ser ensinado aos alunos na Universidade ao longo destes anos todos. As pessoas continuam a insistir num ensino do autismo baseado no DSM. Como se pensassem que o autismo é isso e tudo o resto que cai fora desse limite é qualquer outro diagnóstico. Já nem falo de todas as lutas que fui tendo ao longo da minha formação académica superior e de como a forma como me deram a aprender o que é o autismo me causou uma profunda tristeza, frustração e revolta. Desde a repetida tríade de deficit existente no autismo, ao facto de insistirem na designação pessoa com autismo, como sendo aquela que deveria ser usada, tal como na pessoa com deficiência. E depois como me referiram desde o inicio que o autismo não tinha uma cura, mas quando fui aprender ABA, fiquei a pensar que aquilo que estavam a procurar fazer era erradicar comportamentos da pessoa, como se estivessem a querer erradicar o autismo dela. Ou quando já no decorrer do meu doutoramento quando apresentei o meu primeiro trabalho num evento cientifico e me perguntaram a motivação para realizar aquele tema e eu respondi - Por ser autista. E a pessoa ter ficado a perguntar-me acerca dos meus supervisores e do que é que eles achavam acerca do enviesamento no meu trabalho devido a eu ser autista. Já para não falar das lutas que tive para publicar os meus trabalhos. Não que os meus colegas não as tenham, porque têm, e muitas. Mas as razões que fui encontrando eram algo diferentes das que os meus colgas ouviam. Desde a necessidade de ter de rever a forma sobre o escrever sobre a pessoa autista. Além de me pedirem interminavelmente para rever os resultados encontrados. Como se simplesmente não fosse possível ou concebível. E o que dizer das propostas de temas. Quantas delas foram inicialmente rejeitadas por não se encaixarem no mainstream dos trabalhos científicos propostos no autismo. Ou por algumas das hipóteses teóricas não encontrarem sustentação e validade teórica. E a saga não deixou de continuar. Desde já me terem dito que teria de retirar determinadas designações ou formas de me dirigir a determinadas trabalhos realizados no autismo como desumanos. Dizendo-me que se não estava capaz de os compreender que não deveria fazer parte deste campo cientifico. Além do facto de quando em alguns congressos ter procurado discutir algumas abordagens consideradas por mim como desumanas, alguns colegas terem imediatamente respondido - Nós estávamos a a falar do autismo e não de ti. Já cheguei em alguns momentos a perguntar de que autismo eles estariam a falar. Ou de que tipo de autista eles pensariam que eu fosse. Sendo que na grande maioria das vezes estas pessoas sabem que eu sou autista. E mais uma vez, o facto de verem como enviesamento o facto de eu ser autista e ter realizado a recolha de entrevistas a pessoas autistas. Tenho ideia de alguns colegas meus investigadores em oncologia terem tido eles próprios situações oncológicas e não terem sido chamados a atenção em relação a esse aspecto. A minha crença na Psicologia foi em muito abalada. E confesso que em determinada altura do meu doutoramento pensei em desistir. Assim como em alguns momentos da minha vida. Assim como todos nós em algum momento pensamos em desistir ou fazer outro caminho, ainda que com justificações diferentes.
Enfim, apesar de tudo, terminei esse meu percurso. Pelo menos em parte, sendo que ainda me falta outro tanto caminho. Curioso pensar que ainda hoje continuo a ouvir dizer e de vários lados, que não deveria ter conseguido realizar estes meus objectivos. E que se acreditasse em muitos deles ao longo da vida, teria certamente comprovado as suas teses. Não deveria ter chegado ao ensino superior. Ou seja lá chegasse não iria conseguir fazer nada disso. E não só ouvi isso acerca de mim, como ainda continuo a ouvir muitas dessas merdas no quotidiano. Inclusive de uma forma encapotada por aquilo que se chama de ciência. Não, não estou a ser contraditório, sendo eu próprio um investigador. Estou a dizer que a própria ciência precisa ela própria de se continuar a pensar. Assim como os investigadores e todos nós.
Quanto a mim - Quem sou eu? O André filho, esposo, pai, investigador, docente e sempre autista.
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