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Sobrediagnóstico

Nos últimos anos, o sobrediagnóstico em saúde mental tornou se um dos temas mais debatidos no espaço público. O fenómeno acompanha o crescimento expressivo dos diagnósticos em perturbações do neurodesenvolvimento, sobretudo PHDA e Perturbação do Espectro do Autismo, e surge num contexto marcado por maior visibilidade mediática, maior procura de apoio psicológico e um ambiente digital que amplifica leituras rápidas e nem sempre fundamentadas. O que antes se discutia sobretudo em meios clínicos e académicos tornou se um debate social amplo, frequentemente conduzido com mais convicção emocional do que rigor conceptual.


O sobrediagnóstico descreve situações em que um diagnóstico não produz benefício clínico relevante e pode, inadvertidamente, transformar pessoas em pacientes desnecessariamente. Isto ocorre quando os limites diagnósticos se expandem para incorporar sintomas cada vez mais leves ou quando se identificam condições que dificilmente evoluiriam para quadros incapacitantes. A psicologia clínica e a filosofia da medicina alertam que esta expansão das fronteiras da doença altera a forma como o indivíduo se percebe, criando identidades centradas na patologia e fragilizando a autonomia pessoal. O diagnóstico torna-se, neste caso, mais um fardo do que uma ferramenta.


Este fenómeno não se restringe à saúde mental. Debates semelhantes surgem noutras áreas da medicina, como na deteção precoce do cancro ou na definição dos critérios para hipertensão. Nestes domínios discute se há anos o equilíbrio delicado entre benefício clínico e risco de transformar variações normativas em doenças. A saúde mental enfrenta a mesma tensão. Questiona se até que ponto rotular experiências humanas como doenças é útil ou prejudicial. A linha entre a validação do sofrimento e a excessiva medicalização do viver é subtil e facilmente ultrapassada.


A este cenário juntam se números globais que aumentam a complexidade do debate. Em 2001, a Organização Mundial da Saúde estimava cerca de 450 milhões de pessoas com perturbações mentais. Em 2019, esse número subiu para 970 milhões, cerca de uma em cada oito pessoas. As razões são múltiplas. Maior consciencialização, menor estigma, melhores sistemas de vigilância e alargamento dos critérios diagnósticos. No entanto, estes mesmos factores levantam a necessidade de uma reflexão crítica. Estaremos a identificar sofrimento ou estaremos a renomear fragilidades sociais como doenças.


Esta questão torna se visível quando analisamos a relação entre sofrimento individual e contexto socioeconómico. Muitos diagnósticos psiquiátricos, quando aplicados de forma rígida, podem ocultar as causas reais do sofrimento. Uma pessoa pode apresentar ansiedade não devido a uma disfunção interna, mas devido à precariedade laboral, à insegurança financeira ou a condições sociais adversas. O modelo diagnosticar e tratar, ao focar-se quase exclusivamente na dimensão biológica ou cognitiva, ignora frequentemente a realidade material do sofrimento humano. Esta abordagem pode levar a que indivíduos se sintam descartados, reduzidos a categorias clinicas que não reflectem a complexidade das suas vidas.


A pandemia de COVID 19 intensificou estas tensões. O impacto psicológico global foi significativo e expôs as fragilidades dos sistemas de saúde mental, sobretudo a falta de recursos humanos. Ao mesmo tempo, campanhas públicas incentivaram a população a falar sobre saúde mental. Milhões de pessoas responderam ao apelo e procuraram ajuda. Agora, algumas dessas mesmas pessoas ouvem que procuraram ajuda em excesso, que o seu sofrimento é demasiado leve ou que constituem um peso para os sistemas de saúde. Esta mudança abrupta na narrativa pública é difícil de ouvir para quem já vive em vulnerabilidade emocional.


Importa sublinhar que reconhecer que nem todo o sofrimento é doença não significa desvalorizar esse sofrimento. A filosofia do cuidado lembra que a experiência humana pode ser profundamente dolorosa mesmo sem se enquadrar num diagnóstico formal. Questionar o modelo tradicional de diagnóstico e tratamento não significa negar a legitimidade da dor vivida. Pelo contrário, pode significar abrir espaço para outras abordagens que melhor integrem factores sociais, económicos e existenciais.


A partir desta perspectiva, torna se necessário ampliar a discussão. É possível reconhecer e legitimar o sofrimento emocional e, simultaneamente, questionar se o modelo biomédico é a melhor resposta. Este debate inclui alternativas conceptuais à classificação psiquiátrica e defende abordagens de cuidado mais radicais, capazes de lidar com causas estruturais do sofrimento. Tentar ajudar pessoas em sofrimento sem lhes fornecer estruturas conceptuais e recursos adequados para compreenderem a sua própria experiência é uma estratégia destinada ao insucesso.


Enquanto a saúde mental é alvo de intenso escrutínio sobre sobrediagnóstico, é notável que exista pouca atenção mediática dedicada ao sobrediagnóstico em doenças físicas. Um exemplo claro é o rastreio do cancro da mama. Estudos mostram que, para cada vida salva, cerca de três mulheres recebem diagnósticos de cancros que nunca teriam evoluído para causar danos. Apesar disso, este tema raramente ocupa espaço no debate público, ao contrário do que acontece com a saúde mental, onde a crítica ao excesso de diagnósticos se tornou parte da narrativa dominante. Esta diferença revela uma assimetria cultural que merece reflexão.


A mediatização da saúde mental também tem contribuído para confusão conceptual. Manchetes que alternam entre a crítica feroz à psiquiatria e alarmismo sobre uma suposta epidemia de doença mental constroem um ambiente de ambivalência. A psicologia cognitiva mostra que mensagens contraditórias geram incerteza e reduzem a capacidade de decisão. O leitor questiona se a terapia funciona, se os diagnósticos são reais, se os medicamentos são úteis ou perigosos. Esta ambivalência pode levar muitos a recorrerem ao Dr. Google como fonte primária de esclarecimento, intensificando o risco de autodiagnóstico e pânico.


Ao mesmo tempo, o discurso público sobre medicalização tem sido contaminado por narrativas que culpabilizam as vítimas. A discussão sobre sobrediagnóstico é frequentemente confundida com dúvidas sobre a legitimidade do sofrimento das pessoas. Passa se a insinuar que procuram diagnósticos para obter vantagens, para faltar ao trabalho ou para aderir a identidades sociais consideradas modernas. Esta forma de pensar ignora tanto a complexidade psicológica do sofrimento quanto as condições socioeconómicas que moldam a vida dos indivíduos.


Neste cenário, não surpreende que o público esteja confuso. A origem desta confusão não está na falta de inteligência do cidadão, mas na forma como a sociedade comunica sobre saúde mental. A linguagem perde precisão, os conceitos tornam se elásticos e a fronteira entre sofrimento humano e doença clinica é obscurecida.


Contudo, mesmo no meio da confusão, importa recordar um ponto essencial. As perturbações mentais são realidades clínicas estudadas de forma rigorosa e tratáveis com eficácia. Esta afirmação deveria constituir um ponto de estabilidade num debate frequentemente desviado por exageros e especulações.


A cultura contemporânea alcançou finalmente um consenso alargado sobre a importância da saúde mental. Este consenso é uma conquista, mas também um convite à responsabilidade. O público apoia a causa, mas muitas vezes sem compreender plenamente os seus contornos. A oportunidade histórica reside precisamente aqui. É necessário elevar a literacia em saúde mental, promover jornalismo científico cuidadoso e desenvolver abordagens de cuidado que integrem a complexidade da condição humana.


O futuro da saúde mental exige menos ruído e mais clareza. Menos ambivalência e mais responsabilidade. Menos medicalização cega e mais compreensão profunda do sofrimento. As perturbações mentais devem ser tratadas como aquilo que são, condições reais, comuns, graves e tratáveis, situadas entre biologia, psicologia e sociedade. Só com esta clareza será possível equilibrar a urgência de evitar o sobrediagnóstico com a necessidade ética de não negligenciar quem realmente sofre.

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