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Self autista: Construir, desconstruir e reconstruir


Who is the I that knows the bodily me, who has an

image of myself and a sense of identity over time, who

knows that I have propriate strivings? I know all these

things, and what is more, I know that I know them.

But who is it who has this perspectival grasp?... It is

much easier to feel the self than to define the self.’


Gordon Allport (1961)



Ao chegar aos cinquenta Egdar (nome fictício) tinha pouco ou quase nada desconhecido sobre a sua pessoa. Já havia reflectido muito, na verdade a vida toda e de forma muito intensa, ruminativa por vezes. Já não se espantava com a sua forma de pensar, sentir, decidir ou fazer. Desde a entrada na vida adulta, por volta dos vinte e quatro anos, depois de sair da universidade, a sua vida tem sido muito semelhante em vários aspectos. A sua atitude face às injustiças e incompreensões são conhecidas por todos. Edgar inflama-se e muito com estas situações. É assim desde sempre. Tal como é inquisitivo quando não está a compreender as coisas. Pergunta e volta a perguntar de forma insistente até compreender. Diz que não lhe faz sentido não saber uma coisa e ficar-se continuando sem a saber. Quem o conhece já ouvir dizer que é um desrespeito em relação ao conhecimento não perguntar as coisas. Apesar de já ter ouvido todo o conjunto de criticas e adjectivos face à sua constante escolha em fazer aquilo que gosta, Edgar sente que a sua escolha faz todo o sentido. Afirma que não tem sentido algum sendo a vida algo seu, não escolher aquilo que quer e/ou se sente bem em escolher e/ou fazer. Acrescenta sempre que não consegue compreender por que é que as outras pessoas não fazem o mesmo, sendo a vida uma coisa sua! Há quem diga que Edgar é um lobo solitário e que na maior parte das vezes anda sozinho. Ou quando está no grupo parece não o estar, a não ser que haja algo que lhe interesse. É capaz de estar meses sem dizer nada e ao fim desse tempo fala como se nada se tivesse passado. E fica normalmente sem compreender por que as outras pessoas parecem não reagir da mesma forma. Acrescenta que não compreende o porquê do espanto sendo que ele nunca foi diferente do que agora o é. Em determinados momentos indigna-se por as pessoas se dizerem ou chamarem amigos e depois terem comportamentos aparentemente contrários a isso. E como tal diz que prefere não dizer que este ou aquele são amigos. Refere que as pessoas são quem são e naquele momento em que está com elas isso é o que importa. Quando lhe pergunta quem é, diz sempre que não podia haver uma pergunta mais absurda do que essa. Até porque se a pessoa não sabe quem ele é então terá de o conhecer primeiro e não ficar à espera que ele lhe diga quem ele próprio é. Acrescenta que poderia tentar fazê-lo, ainda que considere dificil. Mas se o fizesse diria aquilo que ele é para si. E que o outro ao ouvi-lo não faria sentido, até porque o outro é diferente dele. Até porque diferente é algo que o Edgar responde nestas situações. Que não sabe como ele é, mas diz que sempre foi diferente dos outros. Pensa, sente e faz as coisas de uma forma completamente diferente e nunca percebeu que alguém o entende-se ou que fizesse algum esforço para o entender. E que a maioria daqueles que lhe foram dizendo alguma coisa ao longo dos anos sobre a sua pessoa entra dentro daquele conjunto de adjectivos que normalmente significam um juizo moral. Desde teimoso, obstinado, obcecado, altivo, arrogante, pedante, e tudo o mais que possam encaixar neste tipo de adjectivos. Diz que tem vivido várias vidas. Explica que até ao fim da adolescência sentia e pensava que era aquilo tudo que lhe dizia. Até porque pensava se todos o diziam alguma razão haveriam de ter. A certa altura na faculdade leu A filosofia do Ser de Heidegger e nunca mais foi igual. Dizia que tinha renascido. As pessoas percebiam que havia muita coisa diferente no Edgar. Parecia menos deprimido e cabisbaixo, ainda que todas as outras suas características continuassem, e porventura mais acentuadas. E foi continuando assim até bem à pouco. Passou por um momento mais desafiante quando a sua irmã morreu recentemente. Nunca tinha pensado em como lidar com isso e com a morte ao mesmo tempo. Acabou por ir a uma consulta de psiquiatria e posteriormente de psicologia. Ao fim de muito pouco tempo começaram a falar-lhe de espectro do autismo. Voltou a lembrar-se do livro do Heidegger. Diz que agora não sente a mesma força e capacidade para reconstruir uma nova vida.


Todos terão a sua própria história para contar, ou melhor, ir contando. Uma história de si próprio, com base naquilo que foi vivendo, experenciando, sentindo, pensando. Aquilo que lhe haverá de alguma maneira, uma vezes mais certa do que outra, afirmar que Eu sou este! Este é o meu Self, a minha forma de ser, personalidade, ou aquilo que gosta ou costuma dizer.


Cada um de nós tem a experiência de um eu unitário, um «eu» que se lembra, escolhe, pensa, planeia e sente. No entanto, tem sido notoriamente difícil explicar o que é essa entidade que pensa, sente, lembra-se e planeia. Isto do ponto de vista cientifico e filosófico.


O que é o eu? Filósofos e psicólogos que procuram uma resposta para essa questão imediatamente veem-se imersos em uma série de questões sobre mente e corpo, sujeito e objeto, objeto e processo, o homúnculo, livre arbítrio, autoconsciência e uma variedade de outros assuntos intrigantes que, em grande parte, escaparam a uma explicação teórica satisfatória.


Mas ainda assim, e no meio de tanta dúvida e inconsistência, as pessoas vão dizendo aquilo que lhes parece ser mais plausível e próximo daquilo que sente ser na realidade.


Dentro das várias teorias existentes, a Teoria da Identidade Social propõe que o autoconceito de um indivíduo é composto por identidades sociais e pessoais. Aqui, a identidade pessoal inclui características que definem o indivíduo e o diferenciam dos outros. Sendo que a identidade autista pessoal abrangeria os interesses e valores específicos do indivíduo como pessoa autista, que ele percebe como contribuindo para a sua singularidade e individualidade (ou seja, características do «eu» e do «mim»). A identidade social, em contraste, representa características partilhadas com um grupo com o qual alguém se identifica. A identidade social autista envolveria semelhanças percebidas ou características partilhadas com outras pessoas autistas (ou seja, características de «nós») e diferenciação de grupos externos (por exemplo, pessoas neurotípicas).


A resconstrução do Self tem procurado ser estudada e compreendida muito em situações de doenças mais graves e impactantes na vida da pessoa e outros acontecimentos de vida experenciados como traumáticos. Mais recentemente tem-se procurado olhar para as pessoas autistas adultas, e principalmente aquelas que são diagnosticadas tardiamente na vida adulta como pessoas que parecem viver processo semelhantes. Foram construindo um Self ao longo de determinado período significativo da sua vida, infância, adolescência e principio da vida adulta. E quando sentem que aquilo que são e os define está cristalizado no seu Self, é-lhe dito que há todo um conjunto de formas diferentes de perceber a sua vida até então, no presente momento e para o futuro. E tendo em conta que as pessoas autistas apresenta toda uma forma de processar a informação acerca de si, dos outros e do Mundo, diferente daquilo que são as pessoas não autistas. Conseguimos compreender a extensão e impacto deste afirmar - Você é uma pessoa autista! Tudo aquilo, ou pelo menos grande parte daquilo que viveu e pensou, maioritariamente negativo acerca de si próprio, da sua forma de fazer, pensar, sentir. E aquilo que as outras pessoas que viveram e conviveram consigo, não sabendo dessa sua condição, também não tinha forma ou conhecimento de o compreender melhor, ainda que pudessem ter sido mais humanistas e compreensivos consigo. Ouvir esta frase nesta altura de vida, assim como o Edgar o ouvir é fracturante e convida a pessoa a desconstruir e reconstruir o seu Self, com todo um conjunto de desafios que isso acarreta, seja pelo facto da pessoa ser uma pessoa adulta que viveu de acordo com um outro paradigma, mas também por várias das suas próprias características.


E não se pense que o facto de ser diagnosticado mais cedo será assim tão mais fácil ou diferente. Até porque entre outros aspectos, muitas pessoas autistas diagnosticadas precocemente passam toda uma vida a ouvir que tem de mudar este e aquele comportamento ou forma de ser, que não podem ter comportamentos de stimming ou tiques porque isso vai ter um impacto negativo na sua vida e na forma como os outros irão reagir consigo. E que terá de aprender estas e aquelas competências para se conseguir ajustar a uma outra forma de ser, pensar, sentir e fazer, e que nenhuma delas é a sua, e várias delas são diametricamente diferente da sua forma de ser, pensar, sentir e fazer.


A reconstrução do Self em pessoas diagnosticadas tardiamente implica um exercício de integração entre o passado vivido e o presente revelado. Não se trata apenas de compreender que o “ser autista” esteve sempre presente, mas de o reconhecer como eixo estruturante da própria experiência. Esta integração exige, muitas vezes, uma releitura do enredo biográfico: aquilo que outrora foi visto como obstinação, rigidez ou excentricidade começa a ser percebido como coerência, necessidade de previsibilidade ou expressão autêntica de interesses profundos. O processo é, simultaneamente, libertador e doloroso, porque permite ressignificar as feridas deixadas pela incompreensão, mas obriga a revisitar os lugares onde essas feridas se formaram.


A dimensão existencial deste processo é inegável. O sujeito confronta-se com a possibilidade de um novo nascimento, como Edgar outrora sentiu ao ler Heidegger. Mas desta vez, a reconfiguração do ser não emerge apenas da leitura filosófica, e sim do reconhecimento de um modo de ser-no-mundo que sempre esteve ali, à espera de nome. O diagnóstico não cria o sujeito autista, apenas o revela. Contudo, essa revelação pode abalar as fundações da identidade construída sob a crença de uma suposta normalidade. A frase “Você é uma pessoa autista” pode, por isso, ter o mesmo impacto ontológico que o “Tu és” da interpelação heideggeriana, convoca o ser a olhar-se a si mesmo com uma radicalidade até então inédita.


Num plano psicológico, esta reconstrução implica a emergência de uma nova narrativa do eu, em que o indivíduo procura reconciliar as múltiplas versões de si. A psicoterapia, quando sensível à neurodiversidade e orientada por uma postura integrativa, pode ajudar a pessoa a encontrar um sentido entre a constância da sua experiência interna e as múltiplas leituras sociais de si próprio. O desafio maior está em reconhecer que o Self autista não é um desvio do humano, mas uma das suas expressões possíveis. E que, ao contrário daquilo que muitas vezes lhe foi transmitido, não é a sua diferença que deve ser curada, mas o sofrimento que advém de ter vivido uma vida inteira a tentar sobreviver num mundo que o interpretava em desacordo com o seu ser.


Por fim, há uma dimensão ética que se impõe. Compreender o processo de reconstrução do Self autista é também reconhecer a responsabilidade coletiva na forma como a sociedade define o que é normal, válido e desejável. A aceitação da neurodiversidade não é apenas um ato de inclusão social, é um gesto ontológico. É o reconhecimento de que o humano é múltiplo e que cada sujeito traz consigo uma forma singular de existir e de se relacionar com o mundo. Edgar, como tantos outros, não procura ser compreendido no sentido banal do termo, mas ser reconhecido enquanto presença autêntica, sem necessidade de tradução para a linguagem da maioria.


Neste contexto, pode ser útil pensar o processo de reconstrução identitária sob a lente de autores que, de formas distintas, se debruçaram sobre o sentido do “eu” e da continuidade pessoal. Paul Ricoeur, por exemplo, propôs a distinção entre idem e ipse, o mesmo e o si-mesmo, mostrando que a identidade não é uma substância fixa, mas uma narrativa em movimento, um fio que se tece entre a permanência e a mudança. Esta leitura permite compreender que a pessoa autista diagnosticada na adultez não “muda de identidade”, mas reconfigura a narrativa do seu ser à luz de uma nova compreensão de si. O diagnóstico, assim, funciona como um ponto de inflexão narrativa que reordena a história sem apagar o que foi.


De modo semelhante, a perspetiva de Winnicott sobre o verdadeiro e o falso self ajuda a iluminar o percurso de muitos adultos autistas. Ao longo da vida, vários vão construindo um “falso self” adaptativo, moldado pelas exigências sociais e pela necessidade de evitar rejeições. O contacto com a verdade da sua condição, e, mais profundamente, com o seu modo singular de ser, permite o emergir de um “self verdadeiro” que não é uma invenção recente, mas uma revelação de algo que sempre existiu, apenas silenciado. O risco, porém, é que o sujeito se depare com a dificuldade de sustentar essa autenticidade num mundo que continua a privilegiar a conformidade.


António Damásio, ao refletir sobre a consciência e o sentir de si, acrescenta uma dimensão neurofenomenológica a esta discussão. O “eu autobiográfico” é, para ele, uma construção que integra a história das experiências e emoções vividas. A leitura do autismo a partir deste prisma evidencia que o sentir do eu autista não é deficitário, mas distinto na forma de organizar a informação e de atribuir sentido às experiências. Compreender isto é essencial para despatologizar o ser autista e para o reinscrever num horizonte de dignidade e legitimidade existencial.


Por outro lado, Goffman, ao falar sobre o estigma e a gestão da identidade social, ajuda-nos a compreender o peso simbólico e emocional que o diagnóstico pode ter. Para alguns, o rótulo de “autista” é libertador, por permitir finalmente nomear o que sempre foi sentido; para outros, é uma nova forma de marginalização. Entre a libertação e o peso, o sujeito move-se num campo de tensões onde a autenticidade e a aceitação social raramente coincidem.


A reconstrução do Self autista, por isso, não se limita ao interior psicológico, nem se esgota na dimensão clínica. É também um fenómeno relacional, cultural e ético. Requer uma ecologia de reconhecimento, onde o ser possa existir sem ser continuamente reinterpretado a partir da norma. Talvez, como diria Heidegger, o verdadeiro desafio seja o de habitar o próprio ser, deixar-se ser o que já se é, sem o peso de ter de o justificar.


Talvez, no fim de tudo, o processo de ser e reconhecer-se não consista em tornar-se outro, mas em regressar a si, ao lugar onde sempre se esteve sem o saber plenamente. Edgar, como tantos que chegam a esta revelação tardia, não nasce de novo, reencontra-se. E nesse reencontro descobre que o tempo vivido não foi perdido, foi apenas vivido sob outra gramática. O sentido da vida não se mede pelo quanto se aproxima da norma, mas pela fidelidade ao que se é. Reconstruir o Self, neste contexto, não é erguer um edifício novo sobre ruínas antigas; é abrir janelas no que antes parecia clausura e permitir que o ar da autenticidade circule, mesmo que ainda doa respirar. Porque, em última análise, ser é aceitar o mistério do próprio existir, com tudo o que nele permanece indizível, inacabado e profundamente humano.

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