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Quem és tu no teu melhor?

Que lindo!! Muito bem, fizeste um desenho lindíssimo!! Olha, e até conseguiste escrever o nome do teu desenho! Vês como tu consegues!! E esse verde foi muito bem escolhido para desenhar esse boneco!!


Muitos de vocês reconhecem estas e outras frases como já as tendo ouvido na vossa infância, e vários de vocês reproduzido quando os vossos filhos, sobrinhos, alunos ou crianças no consultório fizeram um desenho, certo?


Mas se eu vos disser que fui eu que desenhei porventura já não irão usar nenhuma das frases anteriores, a não ser que reconhecam que eu possa precisar de algum tipo de incentivo ou reforço para não me sentir tão mal em relação às minhas competências artisticas. Contudo, quem me conhece sabe que eu desenho pessimamente. E que nunca o viu já me ouvir dizer mais do que uma vez que os meus desenhos são muito básicos.


E então, qual é o problema?! E se para mim estiver bem tal qual está!? E se aquilo que me interessa é fazer um desenho somente para explicar algo um pouco melhor a outra pessoa?!


Talvez esta introdução vos esteja a confundir e a fazer perguntar onde é que eu pretendo chegar, e talvez esteja a ser dificil perceber o inttuito, tal qual será dificil perceber que eu queria desenhar um cão. E não, FROG não é a dizer que o desenho é um sapo, mas sim o nome do próprio cão.


No autismo, é muito comum ouvirmos pais de crianças e jovens autistas assumirem um papel de defesa e promotor das competências dos seus filhos, dentro e fora de casa. Inclusive, tornarem representantes e promotores das mudanças positivas, apoiantes e encorajadores dos seus filhos e destas suas competências.


Nada de novo até aqui, até porque isto acontece tanto dentro como fora do autismo. Qualquer pai e mãe faz isto pelos seus filhos. Contudo, no autismo, parece que sentimos a necessidade de sublinhar um pouco mais estas suas competências, sejam elas de uma maior ou menor qualidade.


Também não é estranho já terem lido ou ouvido nas redes sociais e outras plataformas digitais a dizerem que aquelas crianças, jovens e até mesmo adultos são especiais, dotados de uma qualquer competência ou capacidade acima da média, etc. Ainda que esta questão possa representar uma faca de dois gumes e possa fazer crer que todas as pessoas autistas serão portadoras de uma qualquer competência de exclência numa determinada área e que isso as irá de alguma forma salvar do infortunio da sociedade não os aceitar enquanto pessoas autistas e lhes irem criar imensos obstaculos. E isso por si só contruibuir para gerar uma frustração nas pessoas autistas que sentem não ter nenhuma competência semelhante.


Mas quando perguntamos aos pais com crianças autistas para falarem acerca das coisas positivas dos seus filhos, é comum ouvirmos um conjunto de ideais sobre as competências cogntiivas ou de personalidade. Ele é muito curioso. Ela é muito inteligência. Ele é muito justo, etc. Características que muitas vezes conseguimos perceber que estão intimamente ligadas àquilo que é o perfil de funcionamento daquela pessoa autista. Por exemplo, o facto de ser uma criança muito curiosa, pode representar aquilo que se vai desenvolvendo como uma característica comportamental representativa dos hiperfocos. Ou a inteligência com aquilo que representa uma competência cognitiva de algumas pessoas autistas, em que o seu perfil cognitivo e intelectual pode estar acima ou muito acima da média. E o caso do ser justo, pode perfeitamente representar aquilo que se verifica em muitas pessoas no espectro do autismo de uma marca rigidez e inflexibilidade face à simetria. Onde as coisas têm de ser 50%-50%, caso contrário estaremos perante uma enorme injustiça.


Muitas destas e de outras características vão continuando presentes na criança autista, e depois no adolescente e mais tarde no adulto autista. Algumas outras características vão ficando mais desvanecidas e atenuadas pela aprendizagem de determinadas competências sociais ou de auto-regulação. Contudo, várias destas características vão assumindo uma componente mais marcada e cristalizada, o que faz com que determinadas destas características possam passar a ser vistas e avaliadas não propriamente como algo positivo como já foi na primeira infância e passem a ser avaliadas como um empecilho e entrave na vida da pessoa autista e daqueles que mais frequentemente convivem consigo. Contudo, estamos a falar na maior parte das vezes das mesmas características ainda que observadas em períodos diferentes da vida da pessoa.


Por exemplo, no meu caso e na minha capacidade de desenhar mantem-se inalterada desde a infância, tal como podem comprovar pelo desenho do cão Frog.


Mas isso quer dizer que as pessoas autistas não têm competências, características cognitivas ou de personalidade que sejam positivas e uma mais valia, principalmente para o próprio? Ou se tiverem estas competências têm de ser aquelas que observamos em pessoas que desenham de uma forma única ou fazem calculo aritmético complexo sem necessitarem de auxiliares e num tempo record? Ou resolvem o cubo de Rubik mais complexo em 19 segundos?


Quem somos nós no nosso melhor? Que coisas conseguimos fazer no nosso quotidiano ou em determinadas alturas e que fazem e dizem que somos uma pessoa melhor? Que características temos e vamos desenvolvendo que possam representar este nosso melhor?


Muito frequentemente quando perguntamos a uma pessoa autista, seja ela criança, adolescente ou adulto, o que é que ela faz de melhor, ou qual/quais as suas melhores características, ou o que faz dela uma pessoa melhor! A resposta a estas ou outras perguntas semelhantes costuma ser um silêncio ou encolher de ombros. Até porque frequentemente já ouviram precisamente o contrário, de muitas das suas características, nomeadamente aquelas mais nucleares, serem negativas ou incómodas.


Mas que não pensem que os psicólogos e outros profissionais de saúde não são responsaveis por isso, porque o somos. Pensem naquilo que são os instrumentos de avaliação, sejam os cognitivos, comportamentais ou da personalidade, e vejam quais são as perguntas e actividades que são perguntadas para realizar. Todas elas na grande maioria das vezes apontam para características negativas (i.e., disrupação comportamental, desregulação emocional, rigidez, inflexibilidade, etc.). É fundamental que a própria narrativa e actuação dos profissionais de saúde junto das pessoas autistas e dos seus familiares possa ajudar uns e outros a compreender e a melhor identificar aquilo que são as suas competências e comportamentos que podem ser usados e potenciados para fazer de si uma melhor pessoa, principalmente para seu beneficio e bem estar.


Até porque na minha prática clinica com pessoas autistas adultas, é muito frequente ouvir e ver pessoas autistas adultas que não conseguem identificar nenhuma destas suas competências e que estão presentes em si como uma mais valia. E todos nós, sejamos pessoas autistas ou não, e em qualquer período da nossa vida, precisamos de conseguir identificar, mas também cultivar estas e outras características que fazem de nós melhores pessoas, e que os outros com quem interagimos as pessoas reconhecer e validar.


Talvez o primeiro passo esteja precisamente em reaprendermos o que significa ser “melhor”. Melhor não no sentido da comparação externa, mas da coerência interna. Ser melhor pode significar compreender-se de forma mais lúcida, reconhecer limites, aceitar fragilidades e encontrar nelas um caminho de autenticidade. No caso da pessoa autista, este processo é frequentemente atravessado por barreiras sociais e expectativas normativas que a afastam de uma autoimagem saudável. Contudo, quando o ambiente se torna seguro, quando o olhar clínico é de curiosidade genuína e não de correção, algo floresce. A pessoa começa a narrar-se a si própria a partir do que é capaz, não do que falta.


É aqui que o papel dos profissionais e das famílias se torna transformador. Ajudar a pessoa autista a nomear as suas forças, a identificar o valor do seu modo de pensar, sentir e estar no mundo, é um exercício de restituição identitária. Muitas vezes, a maior competência não é o cálculo rápido, nem a memória prodigiosa, mas a sensibilidade à coerência, a atenção ao detalhe, a honestidade emocional, a persistência, ou até o sentido ético inabalável. Essas qualidades, frequentemente invisíveis à pressa das métricas convencionais, são o que sustenta a dignidade do humano.


Talvez devêssemos aprender a perguntar de outra forma. Em vez de “o que fazes bem?”, talvez devêssemos perguntar “em que momentos te sentes bem contigo?”. Essa simples mudança desloca o foco do desempenho para o bem-estar, e abre espaço para respostas que falam de serenidade, de prazer, de significado. O melhor de alguém pode não ser o que impressiona os outros, mas o que o aproxima de si.


No fundo, quem somos nós no nosso melhor é também uma questão de relação. Tornamo-nos melhores quando somos vistos, compreendidos e aceites na nossa diferença. E o olhar que reconhece valor é o mesmo que desperta a capacidade de o gerar. Assim, cada pessoa autista, cada um de nós, pode continuar a desenhar o seu cão Frog, não para provar talento, mas para expressar verdade.

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