Primeiro episódio psicótico: A ameaça fantasma
- pedrorodrigues

- 28 de out.
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Sosseguem os fãs da saga Star Wars, que não estou aqui para vos deslindar nenhum segredo ainda guardado. Este Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma é um filme épico de acção-aventura e ficção lançado em 1999. Pertence à franquia de filmes Star Wars, sendo o primeiro da triologia prequela e o quarto da série rodado, embora o primeiro em ordem cronológica.
Excepto para os fãs da saga, estou certo que muitos dos outros ficaram confusos, certo? É algo semelhante o que acontece quando começamos a falar de autismo e psicose. Quem é que surgiu primeiro? Como é que se separaram, quando na verdade nunca se separaram, e agora voltam novamente a ser mais falados como estando sobrepostos? Confuso também, certo?
Nos primórdios da história da psiquiatria, o autismo foi inicialmente conceptualizado como um subtipo da esquizofrenia. As suas primeiras descrições surgem associadas ao campo das psicoses precoces, integradas num contínuo que abrangia perturbações graves do pensamento, da perceção e da afectividade. No entanto, com o avanço das investigações clínicas e teóricas, sobretudo a partir dos trabalhos de Leo Kanner e Hans Asperger, foi progressivamente estabelecida uma distinção entre o autismo infantil precoce e a esquizofrenia infantil. Essa diferenciação consolidou-se nas décadas seguintes, permitindo que o autismo passasse a ser reconhecido como uma condição do neurodesenvolvimento distinta das psicoses, nomeadamente da esquizofrenia.
Apesar desta distinção conceptual, a história clínica e científica das duas condições permaneceu entrelaçada. Ao longo dos últimos anos, os estudos têm destacado um número crescente de comorbilidades psiquiátricas associadas à Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), o que conduziu à constatação de que uma proporção significativa de indivíduos com diagnóstico de PEA pode apresentar episódios psicóticos, incluindo primeiros episódios psicóticos (PEP).
Paralelamente, o aumento expressivo de diagnósticos de PEA em adultos trouxe novos desafios à prática clínica. A tarefa de distinguir entre manifestações psicóticas e traços autísticos tornou-se mais complexa, uma vez que ambas as condições podem partilhar características tais como pensamento idiossincrático, expressão emocional atípica, comunicação peculiar e dificuldades na perceção social. Esta sobreposição exige um olhar clínico atento, capaz de discernir entre um funcionamento cognitivo e social persistentemente atípico, característico da PEA, e uma ruptura qualitativa na perceção da realidade, típica da psicose.
A analogia com o universo cinematográfico pode ser elucidativa. Tal como na saga Star Wars, em que a cronologia narrativa se confunde entre prequelas e sequelas, também a história do autismo e da psicose se constrói num movimento de aproximação e afastamento, de continuidade e diferenciação. Quem surgiu primeiro? Como se separaram? E estarão agora a reencontrar-se sob novas luzes neurocientíficas?
A psicose, entendida de forma geral, designa uma perturbação profunda da perceção da realidade. O conceito foi-se transformando ao longo do tempo. No século XIX, Ewald Hecker introduziu o termo hebefrenia para descrever uma forma desorganizada de psicose de início na adolescência; Sante de Sanctis descreveu posteriormente a demência precoce como um estado degenerativo de aparecimento jovem. Estes contributos formaram a base para o conceito de esquizofrenia, tal como mais tarde sistematizado por Emil Kraepelin e Eugen Bleuler. Kraepelin propôs uma abordagem dicotómica que distinguia entre demência precoce e psicose maníaco-depressiva; Bleuler, em 1911, reformulou o conceito de esquizofrenia numa perspetiva dimensional, introduzindo a ideia de um espectro de gravidade e de variabilidade prognóstica.
O autismo, por sua vez, tornou-se um dos poucos diagnósticos em que o conceito de espectro é oficialmente reconhecido nos sistemas classificativos contemporâneos. Trata-se de uma condição do neurodesenvolvimento que se manifesta através de um padrão atípico e heterogéneo de desenvolvimento, com expressões clínicas diversas ao longo do ciclo vital.
As características autísticas não se limitam contudo ao diagnóstico de PEA. Elas são também observáveis, em diferentes graus, em indivíduos com perturbações psicóticas. Este fenómeno sugere uma natureza transdiagnóstica de certos fenótipos biocomportamentais e a existência de vulnerabilidades neurodesenvolvimentais partilhadas entre as duas condições. Investigações recentes apontam para vias biológicas parcialmente sobrepostas, nomeadamente ao nível da conectividade sináptica, da regulação dopaminérgica e da neuroinflamação.
As taxas de coexistência entre traços autísticos e psicose variam amplamente nos estudos, podendo ir de 9 % a 60 % quando se consideram traços subclínicos, e de 1 % a 50 % quando se considera um diagnóstico formal de ambas as condições. A prevalência de sintomas psicóticos em pessoas com PEA é consideravelmente elevada, com estimativas que variam entre 20 % e 60 %.
Mais recentemente, a propostas de diferentes instrumentos de avaliação para as comorbilidades no autismo têm oferecido uma visão mais rica e aprofundada destas intersecção. Por exemplo, o PANSS Autism Severity Score (PAUSS), quando aplicado em sujeitos com primeiro episódio psicótico, demonstra que uma determinada percentagem (30%) obtem uma pontuação acima do limiar, assinalando características autistas. Ainda que estes mesmo resultados não sejam observados de forma estavel ao longo do tempo, até porque as pessoas em questão beneficiaram de intervenção para os seus sintomas. Ao ponto de ser sugerido que o instrumento de avaliação em questão não mede verdadeiramente características autistas traço nas pessoas com um primeiro episódio psicótico, mas antes identifica um subtipo de gravidade mais elevada da psicose com funcionamento pior. Este dado é particularmente relevante para a prática clínica, pois sublinha que a presença de características autísticas em PEP pode ter implicações prognósticas e de tratamento específicas, independentemente da presença de diagnóstico formal de PEA.
No espaço clínico, torna-se então crucial reflectir sobre o significado destas interfaces. A identificação de traços autísticos num primeiro episódio psicótico exige não apenas a aplicação de instrumentos como o PAUSS, mas uma avaliação minuciosa do histórico de desenvolvimento, das funções cognitivas, da interação social e dos padrões de comunicação. A conjunção entre sintomas negativos, desorganização, funcionamento social comprometido e escores elevados no PAUSS pode indicar um perfil de pior prognóstico. Em paralelo, o facto dos resultados no PAUSS terem diminuído no seguimento e terem sido influenciados pelas intervenções aponta para o facto de que estas características autístas podem não ser invariantes, e que o tratamento precoce e intensivo importa para modular o curso clínico.
Em síntese, a intersecção entre o primeiro episódio psicótico e a Perturbação do Espectro do Autismo constitui um domínio de investigação e prática clínica em expansão, mas também complexo e desafiante. A distinção entre PEA e psicose, embora essencial, não esgota a riqueza dos fenómenos clínicos que emergem quando ambos os universos se sobrepõem. Estas reflexões clinicas e cientificas reforçam que a presença de características autístas num contexto de primeira psicose está associada a maior gravidade, menor probabilidade de remissão e pior funcionamento funcional, mas sugere igualmente que essas características podem não reflectir uma condição autista per se, e sim um marcador de complexidade psicopatológica. Para a prática clínica, isto implica uma abordagem rigorosa, integrativa e personalizada: é necessário articular a avaliação neurodesenvolvimental, a intervenção precoce da psicose e estratégias adaptadas que considerem tanto traços autísticos como sintomas psicóticos emergentes. Por fim, para a investigação, abre-se a necessidade de estudos longitudinais que avaliem a estabilidade de traços autísticos em psicose, clarifiquem a utilidade e limitação de instrumentos como o PAUSS, e identifiquem quais intervenções são mais eficazes para subgrupos com sobreposição PEA-psicose. Neste modo, poderemos avançar rumo a modelos de intervenção mais finos, mais direccionados e, em última instância, mais promissores para a pessoa que vive entre o espectro e a irrupção psicótica.




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