Pessoa às camadas
- pedrorodrigues
- há 3 dias
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A leitura do funcionamento de uma pessoa autista requer mais do que a identificação de traços diagnósticos. Exige um olhar clínico e humano capaz de compreender as diferentes camadas que coexistem e se interpenetram na vivência daquela pessoa singular: a camada do diagnóstico, da história pessoal, da personalidade, das estratégias de sobrevivência, da identidade social e da relação com o mundo.
Muitos equívocos clínicos ou sociais surgem quando se tenta interpretar a pessoa autista de forma unidimensional, como se o diagnóstico captasse a totalidade do seu funcionamento. É frequente que familiares, técnicos, psicólogos e psiquiatras — mesmo com boa intenção — confundam traços do autismo com trauma, com escolhas pessoais, com rigidez voluntária, ou com perturbações da personalidade. Esta confusão é potenciada pela superposição entre expressão neurodivergente, traços de personalidade, experiências de vida e estratégias adaptativas.
Tal como em qualquer ser humano, a pessoa autista não é apenas o seu diagnóstico. E, justamente por isso, exige uma leitura mais fina, mais lenta e mais compassiva.
A pessoa autista apresenta-se com diferentes camadas. A ordem pela qual são apresentadas não revela nenhuma importância maior de uma sobre a outra. Temos a camada neurodesenvolvimental - É a base estrutural do autismo: padrões de processamento sensorial, diferenças na comunicação social, interesses restritos, necessidade de previsibilidade. Estas características não são escolhas — fazem parte do modo de ser e estar no mundo; Uma camada adaptativa - Resultado de anos de camuflagem, treino de performance social, evitação de rejeição ou tentativa de se encaixar. Muitas vezes, a pessoa parece funcional, mas vive num estado interno de exaustão, ansiedade ou perda de autenticidade; Mas também, uma camada relacional - Construída a partir de experiências de bullying, exclusão, incompreensão ou relações terapêuticas iatrogénicas. Pode gerar retraimento, desconfiança ou hipervigilância; Além de uma camada emocional - Invisível para muitos, mas intensamente vivida internamente. Pode ser expressa de forma não convencional — através de shutdown, agressividade protetora, ou silêncio emocional; Como em qualquer outra pessoa, também tem uma camada identitária - Referente à forma como a pessoa se entende a si própria — como autista, como ser relacional, como alguém válido ou inválido socialmente; e uma camada da personalidade - Inclui traços como introversão, criatividade, humor, espiritualidade, generosidade ou resistência — que existem para além do autismo, embora com ele se interliguem.
Os profissionais de saúde confundem-se quando: i) Se assume que todos os comportamentos têm causa “neurológica”; ii) ignora a história de trauma ou se patologiza a dor legítima; iii) interpreta rigidez como oposição, silêncio como manipulação, previsibilidade como controlo; iv) espera uma “coerência emocional neurotípica”, desconsiderando os modos diversos de experienciar e comunicar. Estas confusões geram rótulos incorretos, desvalorização de necessidades reais, ou terapias mal orientadas. Mais ainda, impedem a construção de uma aliança genuína, pois a pessoa sente-se mal compreendida, corrigida ou silenciada.
Tiago (nome fictício) tinha 35 anos quando procurou ajuda. Arquiteto de profissão, vivia sozinho e não falava sobre si com ninguém. O diagnóstico de autismo chegou apenas aos 31, depois de anos de diagnósticos falhados: depressão resistente, fobia social, perturbação da personalidade evitante. Nenhuma intervenção parecia fazer sentido. Já passara por seis psicólogos, quatro psiquiatras e múltiplas medicações. Nenhuma delas lhe devolveu o que ele mais desejava: o direito a existir tal como era.
Quando chegou à consulta, vinha com uma expressão neutra. Falava pausadamente, evitava o olhar do terapeuta e deixava silêncio entre cada frase. Não falava de sentimentos — pelo menos não da forma como muitos esperariam. Dizia, com voz baixa: “Nunca soube o que se espera de mim numa conversa destas.”
Mas havia sinais. Quando falava de arquitetura, os olhos ganhavam outro brilho. Falava da luz nas praças como quem fala de pessoas. Partilhou um projeto que desenhara onde todos os espaços tinham recantos de silêncio e zonas de conforto sensorial. Era ali, naquele detalhe, que ele começava a mostrar-se.
A terapia não seguiu o guião tradicional. Não se forçaram perguntas diretas. O terapeuta sugeriu escrever, desenhar, construir uma linha de tempo com eventos marcantes. Lentamente, foram surgindo fragmentos da história de Tiago: a infância marcada por isolamento, os dias de escola onde era chamado de “alien”, o esforço de se adaptar aos jantares de equipa e o esgotamento que vinha depois. O amor não correspondido, não por falta de afeto, mas por dificuldade em expressá-lo como os outros esperavam.
Por trás da aparência contida, havia camadas: a dor do silêncio, o cansaço de ter de fingir todos os dias, a esperança de encontrar um lugar onde pudesse descansar da performance.
Tiago dizia que nunca ninguém o tinha escutado assim. Pela primeira vez, não precisava de justificar-se. Foi descobrindo que a sua forma de ser não era erro — era diferença. E que as suas necessidades não eram exigências — eram estratégias de sobrevivência. Ao fim de alguns meses, começou a escrever. Um blog. Chamava-se “Arquitetura do silêncio”. Era a sua forma de contar o mundo de dentro.
Tiago é apenas um exemplo entre muitos. Cada pessoa autista traz consigo um universo. E, tal como em qualquer ser humano, esse universo é feito de camadas: i) a camada do diagnóstico — que ajuda a entender, mas não explica tudo; ii) das estratégias — que protegeu, mas às vezes cansa; iii) da dor — que não se vê, mas marca; iv) da identidade — que precisa de espaço para florescer; v) e há a camada da alma — que nunca será captada por nenhum manual, mas que se sente quando alguém escuta com atenção.
O maior erro que podemos cometer é olhar para uma pessoa autista como uma caricatura do DSM ou como um enigma a ser resolvido. Elas não precisam que lhes decifremos a vida — precisam que estejamos dispostos a caminhar com elas por dentro dela.
Num mundo apressado, que quer rótulos rápidos e respostas lineares, escutar com calma uma pessoa autista é um ato de resistência. Mais ainda: é um ato de cuidado, de ética e de humanidade.
Ler uma pessoa autista é, antes de tudo, um exercício de escuta profunda da sua complexidade. Não é suficiente aplicar grelhas diagnósticas ou protocolos; é necessário sensibilidade para as camadas invisíveis que moldam o seu modo de estar.
Enquanto psicólogos, somos convidados a: Suspender interpretações rápidas; Validar formas não convencionais de ser e comunicar; Co-construir um espaço de segurança onde todas as camadas possam ser escutadas.
Que possamos, todos, ser menos especialistas em diagnósticos e mais aprendizes da complexidade humana. Porque, no fim, ser autista é apenas uma das muitas formas de ser profundamente humano.
É aí que começa o verdadeiro encontro terapêutico.

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