O que sonham as pessoas autistas?
- pedrorodrigues

- 7 de set.
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Sonhar é uma forma secreta de habitar o mundo. Quando o corpo repousa e a vigília se suspende, abre-se um território de imagens, sons e presenças que se entrelaçam em cartografias de sombra e de luz.
Sonhar é mapear o invisível. Quando o sono nos cobre, a consciência ergue territórios sem fronteiras, povoados por imagens, sons e presenças que se inscrevem como rios subterrâneos. Durante décadas, a psicologia explorou este continente noturno como via de acesso ao inconsciente. Mais tarde, as metodologias mudaram e o interesse desviou-se. A ciência voltou-se para os genes, para os neurotransmissores, para o funcionamento sináptico. Aprendemos muito sobre a arquitetura cerebral e sobre a genética do autismo, mas pouco ou quase nada sobre o que acontece quando essas mesmas pessoas atravessam o reino dos sonhos.
E no entanto, a pergunta mantém-se viva. O que sonham as pessoas autistas?
A investigação já mostrou que certas condições psiquiátricas moldam o tecido onírico. Pessoas com depressão ou esquizofrenia tendem a relatar sonhos menos ricos em palavras, com escassez de adjectivos e menor diversidade narrativa. Estudos com neuroimagem sugerem que o córtex pré-frontal, implicado na linguagem e na organização simbólica, participa de modo distinto durante o sonho em pessoas com perturbações emocionais. Se o conteúdo onírico é modulável por condições psicológicas, porque não considerar que no autismo ele também assume formas singulares?
Poderemos imaginar que, em alguns casos, os sonhos se desenham como paisagens de solidão, com poucas personagens humanas, refletindo a dificuldade que muitas pessoas autistas sentem na socialização. Mas o contrário é igualmente plausível: a noite pode tornar-se palco fértil para o encontro, espaço onde a relação surge liberta das barreiras do dia. O sonho pode ser um continente alternativo, onde a ausência de convenções sociais abre lugar a interações mais fluidas.
A linguagem no sonho é outra fronteira. Enquanto muitos relatos de pessoas neurotípicas se organizam em diálogos e narrativas lineares, os sonhos de pessoas autistas podem privilegiar texturas sensoriais, imagens fragmentadas, repetições de padrões, cores intensas ou sons não verbais. Para indivíduos não verbais, o sonho pode ser tecido de imagens puras, sem necessidade de tradução em fala. Isso convida a uma reflexão fundamental: não é a palavra que funda o sonho, mas o sonho que cria uma linguagem própria, sem gramática fixa.
A ausência de investigação nesta área revela um sintoma maior. No autismo, a ciência preferiu olhar para o mensurável e para o visível. Estudaram-se genes, circuitos, funções executivas, mas esqueceu-se a dimensão íntima, aquilo que nenhuma estatística captura. Sonhar é um ato de subjetividade, e ao ignorarmos os sonhos das pessoas autistas corremos o risco de lhes negar um território de humanidade.
Perguntar o que sonham as pessoas autistas não é mera curiosidade clínica. É um gesto ético, uma tentativa de reconhecer que existe vida interior, rica e complexa, para além dos diagnósticos e das escalas. É procurar cartografar um continente ainda branco no mapa da psicologia. Talvez os sonhos sejam mesmo a última fronteira da diversidade, porque neles não há normas nem diagnósticos, apenas aquilo que emerge, livre, na escuridão do sono.
Aplicações possíveis
Investigar os sonhos no autismo não é apenas possível, é necessário. Algumas propostas concretas poderiam ser:
Estudos comparativos de relatos. Analisar o número de palavras, a diversidade lexical, a presença de adjectivos e de personagens humanas nos relatos de sonhos de pessoas autistas em comparação com pessoas neurotípicas.
Valorização do não-verbal. Permitir que os sonhos sejam expressos por desenho, música ou escrita fragmentada. Isto abriria espaço para quem não comunica pela fala.
Cartografia sensorial. Procurar padrões recorrentes nos sonhos de pessoas autistas: cores, sons, movimentos repetitivos, figuras geométricas ou sequências visuais. Estes elementos poderiam oferecer pistas sobre o modo singular de processar o mundo.
Integração terapêutica. Os sonhos podem ser usados em terapia não como matéria a interpretar rigidamente, mas como campo de partilha. Acolher o que é trazido, ajudar a pessoa a dar-lhe o sentido que quiser, abrir um espaço de reconhecimento e dignidade.
Explorar os sonhos no autismo seria, em última análise, aprender a respeitar as cartografias invisíveis de cada pessoa. Seria admitir que também na noite existe uma geografia da diferença, uma topografia íntima onde o humano se mostra em toda a sua diversidade.




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