Para podemos voar precisamos das condições climatéricas perfeitas, diz António (nome fictício), pai do Josué (nome fictício). Pai, mas podemos começar?, diz Josué. As coisas não podem ser de qualquer maneira, mesmo se for a brincar, insiste António. Josué fez no mês passado seis anos. É um rapaz grande para a idade e só recentemente começou a descobrir as brincadeiras do faz de conta. Foi diagnosticado aos três anos e meio com Perturbação do Espectro do Autismo. E desde então tem estado a fazer acompanhamento em psicologia e terapia da fala. A situação do Josué tem estado a evoluir favoravelmente.
Arminda (nome fictício), mãe do Josué e esposa de António, tem feito um grande esforço na aproximação destes dois. António parecia não saber como se aproximar do filho. Não que não o quisesse fazer. Ainda que o seu irmão mais velho o acusasse repetidamente disso. O próprio António não sabe o que é isso de brincar. Nunca ou raramente o fez. Fazia outras coisas. Desenhava projectos. Passava o dia a desenhar projectos. Alguns deles ninguém os entendia. O seu próprio pai e avô do Josué também parecia não o entender. Ficas o dia inteiro a gastar folhas, dizia ao António. Também por isso António passou a fazer os seus projectos a nível digital assim que teve essa oportunidade. Andava a poupar há mais de cinco anos. Não gastava um único euro. E é para ser entendido à letra. Tinha tudo apontado. E apenas a coluna das entradas tinha registo de valores. Seiscentos e vinte e sete euros e quarenta e oito cêntimos, dizia na linha final do registo. Foi aquilo que António conseguiu amealhar. E foi assim que comprou a sua primeira plataforma digital de desenho. Nunca mais gastou uma folha, mas não deixou de desenhar.
Arminda é diferente de António. Sendo que isso pouco lhe importa. Ela ama o António. E isso chega-lhe. Mas Arminda também sabe que nem todos sentem o mesmo sentimento pelo António. Por exemplo, a sua irmã não consegue lidar bem com o António. Diz que ele é muito áspero na forma de falar e pouco envolvido nas coisas da família. E quando a Arminda diz alguma coisa em seu favor - Isso és tu que casaste com ele. Só tens olhos para ele e é normal que o defendas, diz-lhe.
Pai, na próxima semana gostava que fosse a mãe a levar-me à escola, pode ser? Não dá Josué, disse-lhe o pai. Mas porquê pai, se eu quero, insiste Josué. Porque não é assim. Sou eu que te levo à escola, retorquiu o pai.
Mãe, o pai não deixa que sejas tu a levar-me à escola. E nem sequer me explicou, acrescenta Josué. Compreendo, disse a mãe. E pediste ao teu pai para te explicar?, questiona-o. Não. Apenas insisti, responde-lhe. Talvez possas pedir-lhe para ele te explicar, devolveu-lhe.
Arminda sente que é importante falar com António. Ela tem-se questionado sobre algumas coisas do seu comportamento. E agora que têm estado mais envolvidos com o diagnóstico de Josué, isso levou-a a pensar ainda mais sobre isso.
A história pode ser contada desta ou de outra forma. Os nomes serão certamente outros. E a forma de sentir as coisas também. Várias coisas são importantes. Poder ajudar as pessoas a perceber que ninguém está errado, estragado, maluco, ou outras designações. As pessoas estão a aprender. A perceber quem elas próprias são. A aprender como é que elas são na relação com os outros. E essa aprendizagem leva a que algumas vezes não se perceba o que estão a fazer e o impacto que isso pode estar a ter. Mas isso não é impeditivo que as pessoas se queiram e se amem.
O António é provável que possa ser enquadrado no Espectro do Autismo. Mas o António não sabe. E o António tem 35 anos e até hoje ninguém lhe disse nada. E algumas das características do António não são de agora. Ele precisa de ser ajudado a se compreender. Assim como o Josué e a Arminda. Todos precisam de aprender, sobre si próprios, o outro e da forma como lidam com eles. São uma família. É isso que as famílias fazem. Aprendem a cuidar-se.
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