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O autismo doi-me

A dor, quando não é reconhecida, torna-se silêncio. E no silêncio, o corpo fala o que a linguagem ainda não aprendeu a traduzir.


Beatriz, 15 anos, procurou um serviço de reumatologia pediátrica por dores generalizadas que a acompanhavam há vários anos, oscilando em intensidade. A dor parecia ganhar corpo e força nas situações sociais mais exigentes. Desde criança, o toque era vivido como agressão. Gestos simples, como pentear o cabelo, transformavam-se em experiências de sofrimento. A cabeça e o pescoço eram zonas especialmente sensíveis. As situações sociais, sobretudo as que lhe causavam ansiedade, intensificavam-lhe as dores. O diagnóstico foi de «Síndrome de Dor Amplificada». As tentativas de fisioterapia agravaram o desconforto. Procurou ajuda em saúde mental um ano depois, tomada por uma antipatia crescente para com a família e os colegas, um medo de perder o controlo e causar-lhes mal. O aumento da dor coincidiu com a recusa em frequentar a escola, e só ao afastar-se deste contexto a dor diminuiu ligeiramente. Nessa altura, começaram os cortes superficiais nos antebraços.


Beatriz nunca compreendeu bem o mundo social. Dizia: «Eu simplesmente não entendo as pessoas, são apenas cascas vazias». Tinha apenas uma amiga verdadeira, que via raramente. Não distinguia entre amizade e mera convivência. Também a alimentação era um campo de batalha: muitos alimentos provocavam-lhe repulsa pela textura e pelo sabor. Nos períodos de maior dor, só conseguia comer massa seca e sem condimentos. A sensibilidade gustativa variava conforme a intensidade do sofrimento físico e emocional. Nenhum diagnóstico reumatológico foi encontrado. Recebeu anti-inflamatórios, sem grandes efeitos. Ao longo da infância, destacou-se pela inteligência e criatividade, com interesse absorvente pela estética do século XVIII, ao ponto de vestir-se como uma personagem dessa época. A fala era monótona, o contacto visual rareava. Não se queixava de dor durante a avaliação, mas a mãe relatou que regressava a casa exausta e com dores acentuadas.


Damião, 16 anos, tinha um percurso semelhante. Aos 14, procurou também um serviço de reumatologia devido a dores musculares e articulares difusas. Recebeu o diagnóstico de dor muscular pós-viral, embora sem provas laboratoriais. As dores persistiam e alternavam em intensidade. Mais tarde, foi encaminhado para acompanhamento psicológico por isolamento social e recusa escolar. Passava os dias fechado no quarto. Desde pequeno, reagia de forma intensa a estímulos sensoriais: não suportava carne sólida, apenas triturada; procurava sensações de compressão física; adorava o frio e brincava no exterior em roupa leve, mesmo perto de zero graus. O corte de cabelo exigia cuidados especiais, tal a sensibilidade no couro cabeludo. Tinha dificuldades em compreender os outros e interpretava interações neutras como ameaças. A fala era formal e elaborada, «como a de um advogado», dizia a mãe. Mantinha poucos amigos e parecia satisfeito com encontros esporádicos.


Estes dois jovens ilustram uma realidade mais vasta e profunda. O autismo é um espectro complexo, uma constelação de modos de ser e sentir. A dor, física e emocional, atravessa frequentemente este espectro, mas continua subvalorizada e pouco compreendida.


A experiência dolorosa nas pessoas autistas tem múltiplas origens. A hipersensibilidade sensorial, a sobrecarga emocional e a ansiedade constante contribuem para um corpo em alerta permanente. Por outro lado, há cada vez mais evidências de comorbilidades físicas, nomeadamente doenças autoimunes e condições como a fibromialgia, que se manifestam com dor crónica difusa. Estas condições podem ser subdiagnosticadas nas pessoas autistas, porque os seus modos de comunicar e expressar o desconforto diferem dos padrões esperados.


A dor no autismo não é apenas um fenómeno físico, sendo que este precisa igualmente de ser melhor compreendido também. É também relacional, simbólica e social. A incompreensão, a exclusão e o esforço constante para se adaptar a um mundo social imprevisível geram um sofrimento contínuo, uma dor emocional que, muitas vezes, se traduz no corpo.


Os profissionais de saúde têm um papel central neste desafio. Reconhecer a dor nas pessoas autistas exige escuta sensível, empatia e formação adequada. A expressão atípica da dor, seja pela ausência de queixa explícita, seja por respostas comportamentais inesperadas, não significa ausência de sofrimento. É essencial validar o relato da pessoa autista, compreender o seu modo particular de experienciar o corpo e o mundo, e ajustar as intervenções.


A avaliação tradicional da dor, baseada em auto-relato verbal e em escalas subjetivas, falha frequentemente neste contexto. Torna-se urgente desenvolver instrumentos e abordagens clínicas mais inclusivas, capazes de captar as nuances da experiência autista da dor.


As questões fundamentais mantêm-se em aberto. Será que as alterações sensoriais e sociais do autismo modificam o processamento da dor desde cedo? Ou será que o próprio sistema nervoso partilha vulnerabilidades que se expressam tanto na desregulação sensorial como na dificuldade em modular a dor? Poderemos prevenir estas alterações se forem reconhecidas precocemente?


Responder a estas perguntas implica ouvir as próprias pessoas autistas, integrar a sua experiência subjetiva com a investigação clínica e neurofisiológica, e construir modelos de compreensão que não fragmentem o humano.


A dor, no autismo, não é apenas um sintoma. É uma linguagem do corpo e da alma. É o espelho de um organismo que sente de forma diferente, que comunica de modo singular e que, tantas vezes, não encontra tradução no olhar clínico. Reconhecer esta dor é um ato ético e científico. Validá-la é o primeiro passo para cuidar verdadeiramente.


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