A medida do ângulo é de nove graus menos que o dobro do seu complemento, dizia a pergunta. Eu sabia fazer isto, disse Manuel (nome fictício). Eu estudei isto, continuou. Começou a ficar mais remexido na cadeira. O professor levantou a cabeça para perceber o que se estaria a passar. Eu sabia fazer isto, insistiu. Eu estudei isto, voltou a repetir. Entretanto Manuel não estava a perceber que aquelas frases já não estavam apenas na sua cabeça e já tinha passado para a sua voz. Eu sabia fazer isto, disse-o ainda mais alto. Eu estudei isto. Manuel parecia não estar capaz de se regular. E naquela altura não era apenas o professor que tinha levantado a cabeça. A turma tinha parado completamente de fazer o exame. O professor sentiu que precisava de intervir. Naquela altura o Manuel já se tinha levantado e agarrava a folha do exame com toda a sua força continuando a repetir as mesmas duas frases. Manuel está quase a fazer 15 anos. Falta-lhe quatro dias. Como ele costuma dizer - Eu tenho dois calendários. Um gregoriano e que a maioria das pessoas usa. E outro de graus, e que poucos compreendem. Apesar desta ideia de um calendário de graus causar estupefação a grande parte das pessoas. Quando perguntado ao Manuel, ele fornece toda uma explicação coerente sobre o mesmo. Este calendário de graus tem a ver com a contagem do tempo depois de ter tido o meu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, esclarece. Todos nós parecemos regular a nossa vida de acordo com o calendário, certo?, pergunta-me de forma retórica. Aceno a cabeça afirmativamente. Podes ir ao cinema no fim de semana, perguntam por vezes. E logo de seguida ouvimos alguém perguntar em que dia calha, correcto?, continua. A escola tem todo um calendário que professores, pais e alunos se esforçam para cumprir, acrescenta. Assim como as férias do carnaval, Páscoa ou Natal. E daqui a quatro dias faço eu anos!, diz com certo contentamento. Como tal, o calendário gregoriano regula a nossa vida inteira. Tudo gira em torno de si. Está a acompanhar-me?, pergunta-me. Ao que volto a acenar afirmativamente. E tudo isso levou-me a pensar que na Antiguidade, os habitantes de Babilónia também pensaram nos calendários com base no que eles pensavam ser o número de dias num ano. E assim dividiram uma circunferência em 360 partes iguais, a que chamaram de grau, compreende?, pergunta-me. Quando eu recebi o meu diagnóstico tinha 9 anos. Não percebia bem o que se estava a passar. E ao fim de pouco tempo li que as pessoas nascem autistas. E ainda fiquei mais confuso. Se eu já tinha nascido autista, isso significava que eu sempre fui autista, mesmo quando estava na barriga da minha mãe, compreende?, pergunta-me entusiasmado com a sua própria explicação. Por isso, um dia perguntei à minha mãe se ela nunca tinha percebido que eu era autista quando estava na sua barriga. Ela na altura ficou em silêncio. Um pouco como eu fiquei quando soube de tudo isto. Compreendo que na altura o psicólogo quisesse que eu falasse sobre aquilo tudo, mas eu estava em silêncio, assim como a minha mãe, continua.
Na altura, Madalena (nome fictício), tinha percebido de que precisava de mais créditos de formação. Teresa é professora de Físico-química do Ensino Secundário. Inscreveu-se num Simpósio sobre o autismo em todas as fases da vida. Sentou-se nas filas de trás como habitualmente o faz. Não gosta de ser o centro da atenção, de qualquer tipo de atenção. Sempre foi assim. E ainda que possam perguntar-se sobre como a Madalena resolve a situação das suas aulas, ela responde - É fácil, é o meu trabalho. As coisas diferentes do habitual, do quotidiano. Aquilo que não preparou, e ainda mais as coisas inesperadas, são o pior para si. Apesar de não ser uma área de grande interesse, Madalena não consegue não estar completamente atenta ao que está a ser falado no Simpósio. Não me faz sentido ir a um sitio simplesmente para não fazer nada, compreende?, pergunta-me de forma retórica. Não percebo como é que os meus colegas que vão a muitas das formações a que eu vou estão lá apenas para falar uns com os outros, ou não aprender nada!, acrescenta. Ao fim de não muito tempo a ouvir a apresentação sobre o autismo no feminino na vida adulta, Madalena pensa para consigo - Eu também sou autista? Madalena que até nem é uma pessoa com uma expressividade facial explicita, deve ter feito tal cara que a colega do lado perguntou-lhe se estava a sentir-se bem. Madalena nem sequer percebeu. Apenas se continuava a perguntar - Como é que eu posso ser autista? E nunca ter percebido nada! E nunca ninguém ter percebido nada!? Mas aquilo que estão a falar é sobre mim, concluiu o pensamento tendo ficado enterrada na cadeira onde estava. Mas se isso for verdade, o meu pai também deve ser autista! Madalena sentia que não conseguia aguentar mais aqueles pensamentos, ainda que estivesse habituada a ter muitas situações semelhantes. Mas nenhuma deles com aquela informação. Levantou-se e contrariamente ao que costuma fazer saiu a meio da comunicação seguinte, interrompendo a comunicação pelo ruido que acabou por causar.
Diferente!?, pergunta António. É o meu nome do meio, diz. Chamo-me António "Diferente" Carneiro, e sempre soube desde criança que o sou, acrescenta. Se por um lado estive sempre uns metros atrás dos meus colegas, intelectualmente sempre estive outros tantos à frente, refere. No principio não sentia que aquilo seria diferente, até porque pensava que todos fossem assim. Descobri rápido que não o era. A escola mostrou-me isso. Também por isso sempre a odiei. E ao mesmo tempo sempre a adorei, até determinada altura, por me ajudar a aprender coisas novas. Nunca foi uma relação pacifica. Mas nenhuma das minhas relações o foi, diz. Além do mais nunca ouvi ninguém falar das coisas que eu falava, ou contar as coisas que tínhamos feito da mesma forma. Também por isso pensei que o melhor seria fazer como eles, ser como eles, ainda que nunca tivesse conseguido pensar como eles, refere. Mas também por isso andei bastante perdido naquilo que eu sou, o António "Diferente" Carneiro, autista, compreendes?, pergunta-me. Os meus pais durante muito tempo alimentaram e alimentara-se das minhas competências intelectuais. Não os censuro. Até eu ficava estupefacto com muitas delas. Agora já não tanto, diz. E quando me perguntam como é que eu enquanto autista me tornei tão bom negociador, respondo sempre - Foram os meus colegas que me ensinaram! O facto de ter sido vitima de bullying durante sete anos seguidos levou-me a aprender muito sobre a natureza humana, concluiu.
Demorei a chegar aqui, diz Fátima (nome fictício). Porventura demorei a minha vida toda. Se foi difícil, perguntam-me muitas vezes, agora menos. Eu respondo que não foi fácil. Mas ainda bem que tive toda esta vida para chegar aqui e sentir tudo isto, refere. Já fui reconhecida por muitos outros por aquilo que fiz na vida. Algumas dessas coisas continuo sem perceber por que é que as pessoas se sentiram na necessidade de me reconhecer. Mas principalmente o mais importante é o meu reconhecimento por mim mesma. Esta minha auto-aceitação, da minha pessoa, tal qual ela é. Aprendi a equilibrar o meu autismo com outras partes da minha vida, e sinto que fiz um bom trabalho em aproveitar aquilo que são as minhas competências e a evitar algumas outras características, que teimo em não lhe chamar de dificuldades. Na verdade, nem gosto de pensar em competências. Mas aceito que as pessoas compreendem melhor se falar dessa forma, diz. E na relação com os outros aprendi que grande maioria das pessoas gosta de ser ouvida. E eu sou boa a ouvir, riu-se.
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