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Movimento continuo

A pessoa parece mesmo em movimento! ouvia-se. Mas não pode! Como é que pode estar em movimento se é uma fotografia!? alguém retorquia. Não sei, simplesmente não sei, apenas te digo que me parece estar em movimento! voltou novamente a afirmar no meio da sua incerteza. Deixa-te de coisas! É uma fotografia, é estático, não está em movimento! retorquia novamente de voz mais elevada.


A dúvida e a certeza são dois extremos de um continuum. Pessoas diferentes podem estar localizadas em diferentes pontos desse continuum, de acordo com o quanto elas tendem a procurar refutação versus confirmação. Isto acontece em coisas mundanas como no desporto, mas também na política ou na religião. Em ambas as extremidades do continuum encontram-se também as perturbações mentais, que podem ser entendidas como desvios extremos de um equilíbrio relativamente estável entre estes dois processos de pensamento.


O viés de confirmação constitui uma expressão central deste funcionamento contínuo. Traduz-se na tendência para formular previsões e examiná-las privilegiando informações que confirmem crenças ou expectativas prévias, evitando ou desvalorizando evidências que as contrariem. Este viés manifesta-se através da selecção activa de dados que apoiam a hipótese preferida e da atribuição de maior peso a esses elementos, enquanto factos inconsistentes são minimizados ou ignorados. Este processo reforça a vinculação subjectiva à crença defendida, promovendo rigidez cognitiva e reduzindo a abertura à ambiguidade.


A noção de contínuo, enquanto princípio organizador, permite um diálogo particularmente fecundo entre a física moderna e a psicopatologia contemporânea. No centro deste diálogo encontra-se o continuum espaço-tempo, tal como formulado por Einstein, e o continuum psicopatológico, tal como conceptualizado nos modelos dimensionais da saúde mental. Em ambos os casos, abandona-se a ideia de entidades discretas, fixas e absolutas, reconhecendo-se antes um tecido contínuo, relacional e dependente do observador.


Na relatividade, espaço e tempo deixam de ser entendidos como dimensões independentes onde os fenómenos ocorrem. Passam a constituir uma única entidade quadridimensional, cuja geometria é moldada pela massa e pela energia. A trajectória de cada corpo depende da curvatura global desse tecido. Não existe um tempo universal nem um espaço neutro. A gravidade deixa de ser concebida como uma força externa e passa a ser compreendida como expressão geométrica da curvatura do espaço-tempo.


Na psicopatologia, o pensamento dimensional introduz uma deslocação epistemológica paralela. As perturbações mentais deixam de ser conceptualizadas como categorias estanques, separadas por fronteiras rígidas, e passam a ser entendidas como configurações específicas dentro de um contínuo de funcionamento psicológico. Normalidade e patologia não correspondem a territórios distintos, mas a zonas do mesmo espaço clínico, diferenciadas pela intensidade, rigidez, sofrimento subjectivo e impacto funcional.


É neste enquadramento que o contínuo entre a Perturbação do Espectro do Autismo e as Perturbações da Personalidade adquire particular relevância clínica e conceptual. Durante décadas, estes domínios foram tratados como entidades ontologicamente distintas. O autismo foi ancorado no neurodesenvolvimento, enquanto as Perturbações da Personalidade foram enquadradas sobretudo em modelos psicodinâmicos e nos estilos de carácter. À semelhança do que ocorreu historicamente com a separação entre espaço e tempo, esta dicotomia revela-se progressivamente artificial.


Se o funcionamento psicológico for conceptualizado como um espaço-tempo clínico, o neurodesenvolvimento pode ser entendido como a métrica de base desse tecido. As experiências precoces, a sensibilidade sensorial, a capacidade de integração social e emocional e a flexibilidade cognitiva funcionam como dimensões estruturais. Ao longo da vida, os acontecimentos significativos, os vínculos, o trauma e os processos adaptativos introduzem curvaturas nesse espaço, condicionando as trajectórias possíveis do sujeito.


A Perturbação do Espectro do Autismo pode ser compreendida como uma configuração específica deste tecido psicológico. Caracteriza-se por padrões particulares de processamento sensorial, comunicação social e rigidez cognitiva. Em zonas menos intensas do espectro, estas características podem coexistir com funcionamento adaptativo, sendo por vezes pouco visíveis ou mesmo socialmente valorizadas. À medida que a intensidade aumenta e a flexibilidade diminui, a curvatura do espaço psicológico torna-se mais pronunciada, restringindo as trajectórias relacionais, profissionais e identitárias disponíveis.


As Perturbações da Personalidade podem, por sua vez, ser conceptualizadas como trajectórias estabilizadas nesse mesmo tecido. Não constituem um universo clínico separado, mas padrões duradouros de movimento dentro do espaço psicológico, moldados pela interacção entre predisposições neurobiológicas e experiências relacionais repetidas. Em alguns indivíduos no espectro do autismo, estas trajectórias podem emergir como estratégias adaptativas destinadas a introduzir previsibilidade, controlo e coerência num mundo vivido como excessivamente imprevisível ou ameaçador.


Neste sentido, determinadas expressões das Perturbações da Personalidade, em particular nos domínios esquizóide, esquizotípico, obsessivo-compulsivo e evitativo, podem ser entendidas como zonas de sobreposição no contínuo entre autismo e personalidade. Não se trata necessariamente de comorbilidade no sentido clássico, mas de diferentes leituras clínicas de fenómenos que ocupam coordenadas próximas no mesmo espaço dimensional. Tal como dois observadores situados em referenciais distintos descrevem de forma diferente o mesmo fenómeno físico, também diferentes modelos psicopatológicos podem estar a observar o mesmo funcionamento a partir de quadros conceptuais diversos.


Esta perspectiva tem implicações clínicas significativas. A avaliação diagnóstica deixa de ser um exercício de classificação categorial e passa a assumir a forma de um mapeamento dimensional. O foco desloca-se da identificação isolada de sintomas para a compreensão da geometria global do funcionamento do sujeito, da sua história desenvolvimental, dos pontos de maior rigidez e das áreas onde subsiste plasticidade. No caso da Perturbação do Espectro do Autismo no adulto, esta abordagem é particularmente relevante, uma vez que muitas apresentações foram historicamente interpretadas como Perturbações da Personalidade, obscurecendo a matriz neurodesenvolvimental subjacente.


Do ponto de vista interventivo, esta leitura convida a modelos integrativos e flexíveis. A intervenção deixa de visar a normalização e passa a procurar a reorganização do espaço psicológico, promovendo maior flexibilidade cognitiva e emocional, melhor leitura contextual e trajectórias relacionais menos marcadas pelo sofrimento. Abordagens cognitivo-comportamentais adaptadas, integradas com uma compreensão existencial da identidade, do sentido e da experiência subjectiva, revelam-se particularmente adequadas para trabalhar neste contínuo.


Tal como a relatividade demonstrou que não existe um observador absoluto fora do espaço-tempo, o pensamento dimensional em psicopatologia recorda que não existe um clínico fora do campo relacional que observa. Diagnosticar é sempre um acto situado, dependente do referencial teórico, da história do sujeito e do contexto clínico. Compreender o contínuo entre a Perturbação do Espectro do Autismo e as Perturbações da Personalidade implica reconhecer que estamos perante um mesmo tecido humano, complexo e dinâmico, no qual cada pessoa percorre a sua trajectória singular, não como erro da natureza, mas como expressão legítima da diversidade do funcionamento psicológico.


No prolongamento desta leitura dimensional, torna-se essencial clarificar de que modo a Perturbação do Espectro do Autismo e determinadas Perturbações da Personalidade se sobrepõem fenomenologicamente, mas também de que forma se distinguem quando analisadas ao longo do contínuo do desenvolvimento, da motivação interna e da organização da experiência subjectiva. O diagnóstico diferencial exige precisamente esta leitura longitudinal, contextual e funcional, evitando interpretações baseadas apenas na semelhança superficial dos comportamentos.


Um dos domínios de maior sobreposição é o da interacção social. Pessoas no espectro do autismo podem apresentar contacto ocular reduzido, comunicação não verbal limitada, dificuldades na reciprocidade emocional e um estilo relacional descrito como distante ou pouco expressivo. Estas mesmas características podem ser observadas na Perturbação da Personalidade esquizóide. Contudo, o seu significado clínico é distinto. No autismo, estas manifestações decorrem primariamente de dificuldades no processamento social, na leitura implícita de sinais interpessoais e na integração sensorial e emocional da interacção. Na personalidade esquizóide, o afastamento relacional tende a estar associado a um desinteresse experiencial pelas relações íntimas, a uma preferência consistente pela solidão e a uma restrição afectiva vivida como egossintónica, não como limitação desenvolvimental, mas como modo de ser.


De forma semelhante, a Perturbação da Personalidade esquizotípica e a Perturbação do Espectro do Autismo partilham traços como excentricidade comportamental, comunicação idiossincrática e dificuldades na pragmática social. No entanto, no autismo estas características emergem de um estilo cognitivo literal, de dificuldades na teoria da mente implícita e de uma organização perceptiva particular. Na esquizotipia, o núcleo diferencial reside na presença de pensamento mágico, crenças bizarras, ideação de referência e experiências perceptivas invulgares, que não fazem parte do perfil nuclear do espectro do autismo. O diagnóstico diferencial exige atenção à qualidade do pensamento, à presença de distorções da realidade e à organização do sentido de identidade.


A sobreposição entre a Perturbação do Espectro do Autismo e a Perturbação da Personalidade obsessivo-compulsiva é igualmente frequente. Em ambos os casos podem observar-se rigidez cognitiva, necessidade de previsibilidade, dificuldade em lidar com a incerteza e padrões repetitivos de comportamento. Contudo, no autismo, a rigidez surge como estratégia de autorregulação face a um mundo vivido como sensorialmente e socialmente imprevisível. As rotinas e os interesses restritos funcionam como âncoras reguladoras. Na personalidade obsessivo-compulsiva, a rigidez está mais frequentemente associada a crenças centrais sobre controlo, perfeccionismo, responsabilidade excessiva e medo do erro, sendo vivida como moralmente necessária e dirigida à manutenção de padrões internos de exigência.


A Perturbação da Personalidade evitante constitui outro ponto crítico de confusão diagnóstica. Pessoas no espectro do autismo podem evitar contextos sociais devido à sobrecarga sensorial, à dificuldade em interpretar normas implícitas ou a experiências repetidas de incompreensão e rejeição. Esta evitação é funcional e protectora. Na personalidade evitante, a evitação social é predominantemente motivada por sentimentos intensos de inadequação, hipersensibilidade à crítica e medo de rejeição, coexistindo frequentemente com um forte desejo de proximidade relacional. O diagnóstico diferencial beneficia da exploração da motivação subjacente à evitação e da história desenvolvimental dessas dificuldades.


No que respeita à Perturbação da Personalidade antissocial, a distinção com o espectro do autismo é fundamental, apesar de menos frequente. Algumas pessoas autistas podem parecer indiferentes a normas sociais, demonstrar dificuldades na empatia cognitiva ou adoptar comportamentos considerados socialmente inadequados. Contudo, no autismo estas manifestações não decorrem de exploração instrumental do outro, ausência de remorso ou padrão persistente de violação de direitos alheios. A empatia emocional pode estar preservada ou mesmo aumentada, ainda que mal expressa. Na personalidade antissocial, o traço central reside na instrumentalização do outro, na impulsividade associada a procura de gratificação imediata e na ausência consistente de responsabilidade afectiva.


Um erro clínico comum consiste em interpretar características nucleares do espectro do autismo como traços de personalidade patológicos, sem considerar o seu carácter precoce, transversal e estável ao longo do desenvolvimento. A literalidade comunicacional, a entoação monótona, a expressão facial reduzida ou a dificuldade em compreender convenções sociais implícitas não devem ser confundidas com frieza emocional, manipulação ou défice moral. Da mesma forma, não se deve atribuir automaticamente à Perturbação do Espectro do Autismo padrões comportamentais que emergem mais tardiamente, associados a conflitos identitários, instabilidade relacional intensa ou estratégias defensivas complexas típicas de determinadas Perturbações da Personalidade.


O contínuo entre estas condições torna-se particularmente visível quando se adopta uma perspectiva desenvolvimental. Traços autísticos precoces podem, ao longo da vida, interagir com experiências de rejeição, trauma relacional ou falhas de adaptação ambiental, dando origem a configurações de personalidade mais rígidas. Inversamente, padrões de personalidade podem coexistir com características do espectro sem que uma condição explique totalmente a outra. O essencial não é decidir onde termina uma categoria e começa outra, mas compreender como determinados traços se organizam, se reforçam ou se transformam ao longo do tempo.


O diagnóstico diferencial exige, assim, uma avaliação cuidadosa da idade de início, da estabilidade dos traços, da motivação interna dos comportamentos, do grau de insight, da qualidade da empatia e da forma como o sujeito atribui significado às suas experiências. Só uma leitura integrada, dimensional e contextual permite evitar diagnósticos redutores e intervenções desajustadas.


Reconhecer a sobreposição e o contínuo entre a Perturbação do Espectro do Autismo e as Perturbações da Personalidade não implica diluir as diferenças, mas aprofundar a compreensão da complexidade do funcionamento humano. Trata-se de substituir fronteiras rígidas por mapas clínicos mais finos, capazes de orientar uma prática diagnóstica e terapêutica mais precisa, ética e verdadeiramente centrada na singularidade de cada pessoa.


A fotografia que acompanha este texto fixa um corpo num instante aparentemente imóvel e, ainda assim, tudo nela sugere movimento. O gesto suspenso, a tensão muscular, a direcção do olhar e a assimetria da postura convocam a mesma perplexidade do diálogo inicial. Aquilo que é estático contém, paradoxalmente, uma história de deslocação, de equilíbrio instável, de forças que actuam em direcções opostas. Não vemos o antes nem o depois, mas intuímos ambos. É precisamente nesse intervalo que esta reflexão se inscreve.


Ao longo do texto, o contínuo foi assumido como princípio organizador. Da dúvida à certeza, do espaço ao tempo, da normalidade à psicopatologia, abandonou-se a tentação de fronteiras rígidas em favor de uma leitura relacional, dimensional e contextual. Tal como no continuum espaço-tempo, onde a posição do observador altera a descrição do fenómeno, também na clínica psicológica o significado de um comportamento depende do referencial teórico, da história desenvolvimental e do campo relacional em que emerge.


A Perturbação do Espectro do Autismo e as Perturbações da Personalidade foram aqui pensadas não como territórios mutuamente exclusivos, mas como configurações possíveis de um mesmo tecido humano. As sobreposições observadas nos domínios da interacção social, da regulação emocional, da rigidez cognitiva ou da evitação relacional não constituem erros conceptuais, mas expressões de continuidade. O risco clínico surge quando se confunde a forma com a função, o comportamento observável com a motivação subjacente, o resultado adaptativo com a sua origem desenvolvimental.


O diagnóstico diferencial, neste enquadramento, deixa de ser um exercício de exclusão categorial e passa a ser um acto de leitura profunda do movimento interno do sujeito. Importa perguntar quando surgiu determinado padrão, a que necessidades responde, que sofrimento organiza e que possibilidades restringe. Importa distinguir a rigidez que regula da rigidez que controla, o afastamento que protege do afastamento que empobrece, a diferença que nasce do neurodesenvolvimento daquela que emerge como defesa identitária cristalizada.


A imagem final devolve-nos, assim, a metáfora central desta reflexão. Tal como o corpo fotografado, também cada pessoa habita um ponto singular de equilíbrio num campo de forças invisíveis. Não está parada, ainda que pareça. Não está em queda, ainda que desafie a gravidade. Move-se num contínuo onde estabilidade e mudança coexistem. Compreender o espectro do autismo e as perturbações da personalidade à luz desse movimento é aceitar que a clínica não se faz de rótulos fixos, mas de trajectórias, de tensões e de possibilidades de reorganização.


Encerrar esta reflexão é, por isso, recusar uma conclusão fechada. Tal como a fotografia, o texto permanece aberto ao olhar do outro. O que nele se propõe não é uma resposta definitiva, mas um convite a ver o movimento onde antes se via apenas imobilidade, a reconhecer o contínuo onde antes se traçavam linhas, e a escutar a singularidade de cada trajectória humana como expressão legítima de um mesmo tecido em permanente transformação.

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